O recitativo arioso For, behold, darkness shall cover the earth,
para baixo, começa escuro, falando das trevas, da escuridão, mas aí
o Senhor traz a luz e termina com o brilho do alvorecer e a música sugerindo a
claridade. Essa evolução de sombras para luz nos lembra a festa de
Natal, cujo dia é o do solstício de inverno, no hemisfério norte,
e que substituiu a festa pagã do Sol Invicto. Na noite do dia 24 de dezembro –
o mais curto do ano naquele hemisfério -- para o dia 25, os pagãos
celebravam a vitória do sol, uma vez que os dias passavam a ser,
gradativamente, mais longos. Para nós, cristãos, a luz passou a ser Cristo e a analogia, bastante oportuna.
O texto, mais uma vez, é tirado do Profeta Isaías:
Sim, a escuridão cobre a terra, as trevas cobrem os povos mas o Senhor se levantará sobre ti e sua glória aparecerá sobre ti. E os gentios caminharão à tua luz, os reis, ao brilho do teu alvorecer.
(Isaías 60,2-3)
Quando o marcador de tempo indica 1:50 tem início a ária de baixo The people that walked in darkness have seen a great light:
O povo que andava na escuridão viu uma grande luz, para os que habitavam as sombras da morte uma luz resplandeceu.
(Isaías 9,1)
Fica evidente a forma como são cantadas as palavras darkness e light: enquanto a primeira é a mais grave, mais escura do ponto de vista vocal, a outra é mais alta e mais intensa.
Aos 5 minutos e 34 segundos da gravação é celebrado o nascimento do Messias com o jubiloso coral For unto us a child is born:
Pois para nós uma criança nasceu,
um filho nos foi dado;
a soberania repousa
sobre seus ombros,
e ele se chama: Maravilhoso, Conselheiro,
Deus forte,
Pai eterno, Príncipe da paz.
(Isaías 9,5)
Segue a gravação, continuação do post anterior, tendo como regente Chirtopher Hogwood e, solista, o baixo David Thomas.
Abaixo está um vídeo desse sedutor coral -- agora sob a regência de Sir Colin Davis --, repleto do espírito cristão que deveria dar o tom de uma autêntica celebração de Natal e das esperanças no Ano Novo.
Com esse vídeo e ao som do Messias desejamos um Feliz 2011.
Retomemos o coro And He Shall Purify. Esse coro, conforme já observamos, com texto de Malquias 3,3, conclui o texto da ária de soprano. Na versão de Hogwood -- e, portanto, a de 1754 do Messias --, o coro, em fuga, é introduzido por um coral infantil.
E ele purificará os filhos de Levi Para que eles possam oferecer ao Senhor uma oferta de justiça.
(Malaquias 3,3)
Quando o cronômetro marca 2:50, tem início o recitativo de contralto. O texto, que é retomado em Mateus 1,23, é tirado do Profeta Isaías:
Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe porá o nome de Emanuel, Deus conosco.
(Isaías 7,14)
Aos 3 minutos e 16 segundos tem início a ária de contralto O thou that tellest good tidings to Zion. O texto é tirado de Isaías:
Ó tu que dizes boas novas a Sião, Sobe a uma alta montanha, Ó tu que dizes boas novas a Jerusalém, levanta tua voz com força, Grita, não tenhas medo! Diz às cidades de Judá:
“Eis o vosso Deus!”
(Isaías 40,9)
De pé! Deixa-te iluminar! Chegou a tua luz! A glória do SENHOR está surgindo sobre ti.
(Isaísa 60,1)
Observemos que, logo na introdução, os violinos já brilham e escalam as altas montanhas. Além disso, quando a contralto (na gravação, Carolyn Watkinson) canta mountain, faz melismas que nos dão, de fato, a sensação de que ela está escalando. Essa bela ária é arrematada pelo coro, que retoma o primeiro e os três últimos versos, embora não de forma linear.
Segue a gravação, ainda sob a direção de Chrispher Hogwood, com a contralto Carolyn Watkinson, The Choir Of Westminster Abbey e The Academy of Ancient Music.
O link abaixo leva ao vídeo sob a regência de Sir Colin Davis, com a London Symphony Orchestra e a contralto Sara Mingardo. Aqui o coro infantil não é utilizado.
Abordaremos, aqui, um coro (And the Glory of the Lord), um recitativo e uma ária (But who may abide), todas baseadas em textos do Antigo Testamento. As cenas de 1 a 3, abordadas anteriormente, eram todas tiradas do profeta Isaías. Aqui apenas o coro é uma continuação dos textos de Isaías utilizados nessas cenas -- razão pela qual já o havíamos incluído no 'post' anterior. As outras duas, recitativo e ária, foram compostas a partir de textos de Malaquias e Ageu.
Retomemos o belo coro And The Glory of the Lord, já colocado no posto anterior. Como a letra original, em inglês, está no vídeo abaixo, colocaremos aqui apenas a tradução:
E a glória do Senhor será revelada e toda carne, juntamente, o verá pois a boca do Senhor o disse! (Isaías 40,5)
Trata-se de um coro de grande júbilo, que celebra a glória do Senhor. É um clima de grande alegria e esperança.
Em seguida, após 2 minutos e 50 segundos de áudio, vem o recitativo para baixo:
Assim diz o Senhor dos exércitos: Ainda um pouco mais e Eu abalarei os céus e a terra, o mar e a terra seca, e Eu abalarei todas as nações, e o Desejado de todas as nações virá.
(Ageu 2,6-7)
O Senhor a quem vós buscais de repente virá ao Seu templo o próprio mensageiro da aliença, em quem vos deleitais; eis, Ele virá, diz o Senhor dos exércitos.
(Malaquias 3,1)
Quando o cronômetro marca 4:07 tem início a belíssima ária But who may abide, baseada em texto de Malaquias:
Quem poderá agüentar o dia de sua chegada? E quem ficará de pé quando ele aparecer? Pois ele é igual ao fogo de uma fundição.
(Malaquias 3,2)
A ária começa doce, meditativa, e se incendeia quando a última frase é cantada: sente-se, nitidamente, o fogo chegando! A versão de Hogwood do Messias é a apresentada por Händel em 1754 e, por isso, a ária é cantada por uma soprano -- Emma Kirkby, que o faz com bastante intensidade!
Ouçamos essas três partes com
The Choir Of Westminster Abbey e The Academy of Ancient Music (que utiliza instrumentos de época) sob a regência de Cristopher Hogwood.
Vale a pena nos determos um pouco mais na ária, que nessa gravação da versão de 1754, conforme já observamos, é cantada por soprano e foi escrita, originalmente, para baixo -- razão pela qual vem em seguida do recitativo de baixo. Há, no youtube, dois vídeos interessantes do aspecto histórico, uma vez que ilustram a evolução dessa ária. Infelizmente, são vídeos caseiros, com acompanhamento de midi, só mesmo para conhecermos as versões compostas por Händel anteriormente a essa que conhecemos hoje, composta em 1750. O vídeo abaixo traz aquela que acredita-se ter sido a executada na estréia da obra, em 1742, bastante curta e só com os dois primeiros versos da letra que hoje em dia é cantada:
No ano seguinte, após uma revisão, a ária ganhou a letra inteira exposta acima e ficou consideravelmente mais longa e elaborada:
Após tantas versões, pode surgir a pergunta: qual é a definitiva, para Händel? De fato, no barroco, não havia esse conceito de uma versão definitiva da obra. Ao contrário, ela era normalmente adaptada ao ambiente e aos intérpretes.
Para encerrar, o link abaixo lava a um vídeo em que The Choir of King's college de Cambridge e The Brandenburg consort, sob a regência de Stephen Cleobury, executam o recitativo para baixo (Alastar Miles), a ária cantada pela contralto Hillary Sumers e o coro que conclui a ária:
E ele purificará os filhos de Levi Para que eles possam oferecer ao Senhor uma oferta de justiça.
O Messias de Händel é, sem dúvida, um dos oratórios mais conhecidos -- se não o mais conhecido -- da nossa música ocidental. Mesmo aqueles que não têm muito contato com a nossa música clássica já ouviram o "Aleluia" de Händel.
Mercier: Retrato de Händel.
Georg Friedrich Händel, um dos mais importantes compositores do barroco, nasceu na Alemanha em 1685 -- mesmo ano em que Bach -- e aos 20 anos foi para a Itália: por três anos aprendeu e assimilou o estilo da ópera italiana. Em 1710 mudou-se para a Inglaterra, onde produziu a parte mais significativa de sua obra -- inclusive O Messias -- e virou George Frideric Handel. Lá permaneceu até sua morte em abril de 1759.
Com música de Händel e libreto de Charles Jennens, o Messias(Messiah, HWV56) foi composto no verão de 1741 e estreou no ano seguinte, em um concerto beneficente em Dublin, obtendo grande sucesso.Trata-se de um extenso oratório em três atos, que abrange toda a trajetória de Cristo. Segundo relatos, Händel teria levado apenas 24 dias para compor a peça.
As três partes (ou atos) do Messias são:
Parte I: A Anunciação
1: A profecia da Salvação
2: A profecia da vinda do Messias
3: Presságios para o mundo em geral
4: Profecia do concepção da Virgem
5: A aparição do Anjo aos Pastores
6: Milagres de Cristo
Parte II: A Paixão
1: Osacrifício, aflagelaçãoe aagonianacruz
2: Sua morte,Suapassagempelos infernos,e suaressurreição
3: Sua Ascensão
4: Deusrevela a sua identidadenoCéu
5: Oiníciodaevangelização
6: O mundo eseusgovernantesrejeitamo Evangelho
7: O triunfo de Deus
Parte III: O resultado
1: A promessaderedençãodaquedade Adão
2: Dia do Julgamento
3: A vitória sobre a morte e o pecado
4: A glorificação de Cristo.
A gravação abaixo -- com o excelente tenor Paul Elliott e a Academy of Ancient Music sob a direção de Christopher Hogwood -- começa com a Sinfonia de abertura, da qual destacamos a fuga tipicamente barroca que pode ser ouvida após uma curta introdução. Aos 2 minutos e 50 segundos de gravação tem início o arioso -- algo entre recitativo e ária -- para tenor "Confort ye": um trecho do Profeta Isaías que diz
“Consolai, consolai o meu povo!”, diz o vosso Deus. Falai ao coração de Jerusalém, anunciai-lhe: seu cativeiro terminou, sua culpa está paga, da mão do SENHOR já recebeu por suas faltas o castigo dobrado. Grita uma voz: “No deserto abri caminho para o SENHOR! No ermo rasgai estrada para o nosso Deus!" (Is 40, 1-3)
Chama-nos a atenção, nesse clima quase solene de proclamação, a primeira frase a ser cantada, "confort ye", a forma como ela é reforçada, conforme será observado em outro vídeo adiante.
Aos 5 minutos e 45 segundos do áudio tem início a ária "Every valley shall be exalted", ainda para tenor. É a continuação do trecho de Isaías:
Todo vale seja aterrado, toda montanha, rebaixada, para ficar plano o caminho acidentado e reto, o tortuoso.(Is 40,4)
Aqui estão presentes os contrastes forte-piano típicos do barroco e os melismas, além das notas ascendentes e descendentes, que nos ajudam a visualizar os vales e montanhas do caminho que será aplainado. Quando o texto fala dos vales que serão elevados, primeiro as notas descem aos vales, depois sobem, o elevando. Já as montanhas são primeiro escaladas, depois rebaixadas. Também o acidentado e o tortuoso apresentam movimentos verticais das notas, enquanto que no plano há um longo melisma que muda de nota suavemente e com intervalos muito pequenos. Trata-se de um exemplo da aplicação da Teoria dos Afetos, bastante popular no Barroco. Os trechos da parte da voz, abaixo, ilustram de forma gráfica esses movimentos ascendentes e descendentes.
Vamos, agora à música!
Sobre o "Confort ye" que comentamos acima, segue o vídeo com comentário do maestro Trevos Pinnock. Um tanto lenta e quase romântica, com um tenor que está confundindo Händel com Wagner, não é, musicalmente, a nossa concepção preferida, mas vale a pena ouvir o que ele fala desse "confort ye", consolai, tão simples, três notas, e que tanto nos envolve.
No capítulo 3 do Evangelho de S. Mateus é anunciado que se cumpriu a profecia de Isaías:
"Apareceu João, o Baptista, a pregar no deserto da Judeia.
Dizia: «Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu.»
Foi deste que falou o profeta Isaías, quando disse: Uma vozclama no deserto:
Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas."
O trecho de Orígenos, abaixo, nos lembra que a reflexão cristã na preparação do Natal não se deve resumir a rememorar um fato histórico ocorrido há mais de 2 milênios, mas, principalmente, a acolher a vinda de Cristo a cada dia em nossa vida:
"João batista dizia: «Toda a ravina será preenchida» (Lc 3,5), mas não foi ele
quem preencheu todos os vales, foi o Senhor, nosso Salvador. [...] «E os
caminhos tortuosos ficarão direitos». Cada um de nós era tortuoso [...] e foi
a vinda de Cristo, realizada na nossa alma, que endireitou tudo o que o era." Orígenes (c. 185-253), presbítero e teólogo
Após essas considerações, voltemos à música, agora com a versão em vídeo do áudio postado acima, porém sem a Abertura. Não escolhemos o vídeo de outra versão qualquer para postar aqui porque quanto mais ouvimos diferentes gravações do Messias mais nos convencemos da excepcional qualidade da de Hogwood.
Händel e o Profeta Isaías continuam:
A glória do SENHOR vai, então, aparecer e todos verão que foi o SENHOR quem falou! (Isaías 40,5)
Voltaremos a esse belíssimo coral no próximo 'post', com a excelente versão de Hogwood.
Motivados pelo concerto da Osesp desta semana (22 a 24 de abril de 2010), exploremos um pouco a Sinfonia n. 1 em Ré maior de Gustav Mahler (1860-1911).
Antes de mais nada, ouçamos um delicioso lied -- ou seja, uma canção -- de Malher, que aparecerá durante praticamente todo o movimento da sinfonia. Essa canção, Ging heut morgen übers Feld, é o segundo movimento do ciclo Lieder Eines Fahrenden Gesellen (Canções de um Companheiro Viajante), de 1884, com letra e música do próprio Mahler, e que teve por motivação uma paixão não correspondida. A histórica gravação abaixo é do fantástico barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau.
Ging heut morgen übers Feld
Nesta manhã eu andei através de um campo
Ging heut morgen übers Feld, Tau noch auf den Gräsern hing; Sprach zu mir der lust'ge Fink: "Ei du! Gelt? Guten Morgen! Ei gelt? Du! Wird's nicht eine schöne Welt? Zink! Zink! Schön und flink! Wie mir doch die Welt gefällt!"
Esta manhã atravessei o campo, Ainda havia orvalho na erva. Disse-me o tentilhão: «Olá! Como estás? Bela manhã! Não é verdade? O mundo não está a tornar-se belo? Chip! Chip! Belo e vivo! Como me agrada o mundo!»
Auch die Glockenblum' am Feld Hat mir lustig, guter Ding', Mit den Glöckchen, klinge, kling, Ihren Morgengruß geschellt: "Wird's nicht eine schöne Welt? Kling, kling! Schönes Ding! Wie mir doch die Welt gefällt! Heia!"
Também as flores-campaínhas do campo Estiveram a anunciar coisas alegres com o seu pequeno sino, ding, ding. Ao darem os bons-dias: «O mundo não está a tornar-se belo? Ding, ding! Coisa linda! Como o mundo me agrada! Eia!»
Und da fing im Sonnenschein Gleich die Welt zu funkeln an; Alles Ton und Farbe gewann Im Sonnenschein! Blum' und Vogel, groß und klein! "Guten Tag, ist's nicht eine schöne Welt? Ei du, gelt? Schöne Welt?"
E ali, sob os raios do sol, Começou o mundo a brilhar. Tudo ganhou sons e cor Sob o brilho do sol! Flores e aves, grandes e pequenas! «Bom-dia! O mundo não é belo? E tu, que dizes? Não é verdade? O mundo é belo!»
Nun fängt auch mein Glück wohl an? Nein, nein, das ich mein', Mir nimmer blühen kann!
Agora a minha felicidade também vai começar? Não! Não! A felicidade em que penso Nunca poderá florescer para mim!
No terceiro movimento será citada a quarta canção do mesmo ciclo. Abaixo está a gravação com o fantástico barítono Thomaz Hampson, que tivemos o inesquecível prazer de assistir em São Paulo, sob a regência de Leonard Bernstein. Observemos que o clima da canção já é bem diferente do da anterior.
Die zwei blauen Augen von meinem Schatz
Os dois olhos azuis do meu tesouro
Die zwei blauen Augen von meinem Schatz, Die haben mich in die weite Welt geschickt. Da mußt ich Abschied nehmen Vom allerliebsten Platz! O Augen blau, warum habt ihr mich angeblickt? Nun hab' ich ewig Leid und Grämen.
Os dois olhos azuis do meu tesouro Mandaram-me pelo mundo fora. Tenho de me despedir Destes lugares queridos! Ó olhos azuis! Porque olhastes para mim? Assim eternamente não terei senão dor e sofrimento!
Ich bin ausgegangen in stiller Nacht Wohl über die dunkle Heide. Hat mir niemand Ade gesagt. Ade! Mein Gesell' war Lieb' und Leide! Auf der Straße steht ein Lindenbaum, Da hab' ich zum ersten Mal im Schlaf geruht!
Parti para a noite serena, Atravessei o prado adormecido. Ninguém me disse adeus. Adeus! Os meus companheiros eram o amor e a dor. À beira do caminho estava uma tília, Debaixo dela descansei pela primeira vez, adormeci.
Unter dem Lindenbaum, der hat Seine Blüten über mich geschneit, Da wußt' ich nicht, wie das Leben tut, War alles, alles wieder gut! Alles! Alles, Lieb und Leid Und Welt und Traum!
Debaixo da tília, que me cobriu Com o manto dos seus botões em flor. Ali esqueci o tormento da vida. Tudo, tudo ficou novamente claro. Tudo, o amor e o sofrimento, O mundo e o sonho.
Agora que já ouvimos e saboreamos as canções sigamos em frente. A Sinfonia n. 1 de Mahler estreou no dia 20 de novembro de 1889, em Budapest, sob a regência do próprio compositor. Segundo nos indica o depoimento abaixo, com tradução portuguesa, a estréia da sinfonia que hoje é tão bem aceita não foi assim tão tranquila:
Os admiradores e os detractores de Mahler tiveram oportunidade de travar uma acesa batalha no último domingo, durante a estreia da sua Sinfonia Irónica (em Ré maior). Um melómano contou-me como tudo se passou. No terceiro andamento da sinfonia pode ouvir-se uma paródia de uma marcha fúnebre. Alguns entendidos deram logo conta disso e começaram a rir, facto que suscitou a ira dos admiradores de Mahler, para quem era inadmissível que alguém se risse durante uma marcha fúnebre. Tais admiradores tentaram por isso calar as gargalhadas dos ouvintes. Os detractores de Mahler, porém, entenderam que tal intervenção era excessiva pelo que, pretendendo demonstrar que a marcha fúnebre do senhor Mahler não era música séria, começaram a rir eles próprios com todas as forças que tinham, com o intuito de ridicularizar o senhor Mahler. E assim se desencadeou um combate tumultuoso entre bem e maldizentes. E aqueles entendidos que tinham rido por primeiro não ficaram isentos de consequências pois o ruído provocado pelos demais levou a que os sons cómicos da orquestra deixassem de se ouvir.
(Karl Kraus, A Tocha, nº 59, novembro de 1900)
Na estréia a sinfonia ainda estava em sua forma original: um poema sinfônico com duas partes, sendo que a primeira se referia à recordação da juventude e a segunda, à comédia humana. Na segunda execução (1893), Mahler deu o título Titã -- devido à novela homônima do escritor alemão Johann Paul Friedrich Richter (1763-1825), conhecido como Jean Paul --,
anexou um programa detalhado e a transformou em um poema sinfônico em forma de sinfonia, com cinco movimentos, mas ainda divididos em duas partes. A partir da quarta execução (1896), Mahler excluiu qualquer programa ou título, deixando-a apenas como Sinfonia em Ré Maior, e ainda com cinco movimentos. Por ocasião da impressão, em 1899, o segundo movimento foi suprimido, por não combinar tematicamente com os outros quatro, que são unidos por um motivo de quarta descendente -- conforme ouviremos logo no início do primeiro movimento. Podemos ver, assim, que a sinfonia não nasceu da forma que a conhecemos hoje. Ao contrário, apesar de o compositor já apresentar grande maturidade musical e material inovador, demorou para se sentir seguro com sua primeira sinfonia. O rótulo 'sinfonia' traz uma responsabilidade que frequentemente inibe compositores. Para Brahms, por exemplo, o processo de compor sua primeira sinfonia também não foi nem um pouco fácil.
Primeiro Movimento
É o primeiro movimento da primeira parte da sinfonia que, segundo o programa de 1893, descrevia as “Recordações de juventude: promessas, conquistas e espinhos”. Este movimento é a primavera sem fim.
Ele começa, como o despertar da natureza após longa hibernação, com um Lá longo nas cordas, que persiste enquanto madeiras tocam um pequeno tema de duas notas (que faz lembrar o comecinho da Nona Sinfonia de Beethoven), a primeira quarta descendente -- que, conforme observamos acima, será uma constante durante a sinfonia --, um lá-mi, que se repete mais uma vez e, na terceira, é acrescido de mais duas quartas descendentes, formando um tema de seis notas a partir da sequência: quarta descendente, segunda ascendente. Em seguida, a família das clarinetas toca uma rápida e alegre fanfarra. Retorna a sequência de seis notas, com uma sétima a finalizando, e, em seguida, a fanfarra, mas dessa vez com três trompetes que estão fora do palco, representando trompas de caça. A resposta a isso é o tema de quarta descendente de duas notas, fazendo, nitidamente, um 'cuco': um som da natureza. Aliás, essa introdução, segundo Mahler indicou na partitura, deve ser tocada como um som da natureza.
Repetem-se as quartas descendentes e eis que surge, a partir delas, o lied 'Ging heut morgen übers Feld', tema principal do primeiro movimento, que colocamos acima. Mesmo durante o lied, a quarta descendente faz 'cu-co'. Neste momento, cria-se um encantador clima pastoral e a pureza dos sons da manhã, da natureza, tomam conta da sinfonia. É como se pássaros estivessem emprestando seu canto ao lied de Mahler. Após um climax, a orquestra volta a se acalmar, persistindo apenas as quartas descendentes. A esse 'intervalo' se segue um tema bem austríaco, que nos transporta à Viena do tempo de Mahler, no qual o lied está presente.
Acreditamos que alguém que não conheça o lied usado neste movimento não tenha qualquer prejuízo na sua apreciação, uma vez que o clima transmitido por Mahler independe de qualquer conhecimento prévio.
Segundo Movimento
Ao ouvir este movimento, não se engane: não é a cena do brinde de La Traviata! Mahler era maestro, o que pode explicar a citação, mas seria um inútil exercício tentar adivinhar o que Mahler quis com isso, ou mesmo se planejou isso ou se simplesmente a música veio à sua cabeça sem pedir licença.
Uma dança com ritmo acentuado, introduzida por trompetes, que fazem quase que um anúncio imperial, toma conta de quase todo o movimento. Nesta dança, os violinos têm presença importante -- em contraste com as outras partes, dominadas pelos instrumentos de sopro. A dança é considerada o único scherzo de uma sinfonia de Mahler que não tenha um caráter de paródia ou ironia. As quartas descendentes também podem ser ouvidas.
Na metade do movimento surge o trio: uma valsa mais lenta, mais calma, sensual, onde cordas e madeiras dialogam. A dança rústica inicial é logo retomada e persiste até o fim do movimento.
Terceiro Movimento
Começa com a conhecida canção Frère Jacques, em cânone -- que, segundo Mahler, deve permanecer piano e sem crescendo --, porém em tom menor e como uma marcha fúnebre. Verdi aparece novamente, agora com o Rigoletto (Ato 1, Cena 2). Seguem-se citações de canções circenses ou de feira popular e a já mencionada quarta canção do ciclo. Após isso, retornam Frère Jacques e a marcha fúnebre que, segundo o trecho acima, causou risos nos entendidos da época, delatores de Mahler.
Porém, o que terá chocado ainda mais o público do seu tempo, foi o programa que Mahler distribuiu e segundo o qual este andamento seria uma Marcha fúnebre “ao estilo de Callot”. A alusão a Jacques Callot (1592-1635), um estranho artista gráfico francês famoso pelo tom fantástico e grotescamente anedótico dos seus desenhos, é simultaneamente uma alusão a E.T.A. Hoffmann e às suas Fantasiestücke in Callots Manier (Peças fantásticas à maneira de Callot, 1814-15) – que tinham inspirado já Schumann para as Peças de Fantasia op.12. Esta alusão indica que não se trata aqui de luto, mas sim de uma paródia sobre o luto, na qual o elemento grotesco assume preponderância. Mais ainda: Mahler associa toda a cena a uma imagem muito conhecida dos livros infantis do espaço cultural germânico, um desenho intitulado “As cerimónias fúnebres do caçador”, no qual diversos animais da floresta acompanham o caixão do caçador morto até à sepultura: lebres empunham estandartes, enquanto à frente uma banda de música da Boémia toca, sendo acompanhada por gatos, sapos, e gralhas; veados, corças, raposas e outros animais quadrúpedes acompanham o cortejo em posturas burlescas.
(Paulo Pereira de Assis, no programa da Orquestra Nacional do Porto - 16/01/2010)
Quarto Movimento
Começa num bom estilo de filme de suspense. Sem dúvida trata-se do trecho sinfônico mais barulhento até então escrito. Devemos observar que para fazer o fortíssimo Mahler não se vale de todos os instrumentos da orquestra tocando juntos, mas sim sequencialmente. Surge uma melodia que só vai acumulando energia, tensão, passando longe de qualquer cadência ou repouso. Após um tempo, a orquestra se cala e recomeça com mais tranquilidade. Surge um segundo tema mais lírico, de grande beleza e dramaticidade, e bastante longo.
O primeiro tema retorna, sempre com violência.
Em seguida a orquestra se acalma e uma surpresa: aparecem o cuco (quarta descendente) e a melodia principal do primeiro movimento (Ging heut morgen übers Feld).
Os sons da natureza, como no primeiro movimento, persistem mesmo na coda, inclusive com a nota sustentada nas cordas.
No primeiro dia da semana, bem de madrugada, quando ainda estava
escuro, Maria Madalena foi ao túmulo e viu que a pedra tinha sido
retirada do túmulo. Ela saiu correndo e foi se encontrar com Simão Pedro e com o outro
discípulo, aquele que Jesus mais amava. Disse-lhes: “Tiraram o Senhor
do túmulo e não sabemos onde o colocaram”.
Pedro e o outro discípulo saíram e foram ao túmulo. Os dois corriam juntos, e o outro discípulo correu mais depressa, chegando primeiro ao túmulo.
Inclinando-se, viu as faixas de linho no chão, mas não entrou.
Simão Pedro, que vinha seguindo, chegou também e entrou no túmulo. Ele observou as faixas de linho no chão,
e o pano que tinha coberto a cabeça de Jesus: este pano não estava com as faixas, mas enrolado num lugar à parte.
O outro discípulo, que tinha chegado primeiro ao túmulo, entrou também, viu e creu.
De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos.
(Jo 20, 1-9)
O Oratório de Páscoa (Osteroratorium BWV 249) foi composto por Bach na década de 1730.
De comovente beleza, ele começa com uma vibrante Sinfonia que tem algumas frases que fazem lembrar a sinfonia de abertura do Oratório de Natal. Tal associação faz todo o sentido, inclusive por estarem ligadas as idéias de Ressurreição e nascimento. O lindo Adagio, quase uma ária para oboe d'amore, dá o clima de vazio, de silêncio, que imperava após a morte de Jesus. A vibração da sinfonia é retomada no coro inicial, que canta a corrida de Pedro e João em direção ao túmulo onde Jesus deveria estar. A atmosfera do Adagio, no entando, é retomada. Como narra o momento em que mulheres e, em seguida, os discípulos descobriram que a pedra havia sido retirada e o túmulo estava vazio, o oratório começa com a dúvida e a hesitação, ainda sob o efeito da tristeza causada pela morte de Jesus, e com uma música de grande beleza e delicadeza. Ao longo do oratório surge a agitação -- 'onde encontro Jesus?' -- e, finalmente, a alegria: 'nosso Salvador vive de novo! Alegrai-vos!'
No vídeo, o Philippe Herreweghe, um especialista no assunto que tivemos o privilégio de ver, aqui em São Paulo, em 2009. Podem ser vistos, no vídeo, instrumentos de época como o oboe d'amore, já citado, e flauta de madeira, etc.
Infelizmente, os recitativos foram suprimidos do vídeo do youtube. Colocaremos, porém, o texto aqui, para que se tenha uma visão completa da obra.
Oratório de Páscoa
BWV 249
Philippe Herreweghe
Collegium Vocale
soprano: Agnès Mellon
alto: Andreas Scholl
tenor: Mark Padmore
baixo: Peter Kooy
1. Sinfonia
2. Adagio
3. Coro
Kommet,Kommt, eilet und laufet, ihr flüchtigen Füße,
Erreichet die Höhle, die Jesum bedeckt!
Lachen und Scherzen
Begleitet die Herzen,
Denn unser Heil ist auferweckt.
Vinde, correi e com pressa, pés fugitivos,
Alcançai a gruta que cobre a Jesus!
Risos e graças
Seguem os Corações,
Pois nosso Salvador despertou.
4. Recitativo
Ó fria Mente dos Homens!
Onde foi o Amor,
Que ao Salvador deveis?
Uma fraca mulher vos envergonha!
Ah! Uma turbada Aflição,
E no Coração um doloroso penar,
Com salgadas Lágrimas
E Ânsias plenas de melancolia
Ungüento para ele hão de ser,
Que vós, assim como nós, em vão preparastes.
5. Ária
Seele, deine Spezereien
Sollen nicht mehr Myrrhen sein.
Denn allein
Mit dem Lorbeerkranze prangen,
Stillt dein ängstliches Verlangen.
Alma, teus ungüentos
Não devem ser mais de mirra.
Pois somente
O esplendor de uma coroa de louros
Há de pacificar teus ansiosos Anelos.
6. Recitativo
Eis a Gruta.
E aqui a Pedra,
Que tal a recobre.
Mas onde estará meu Salvador?
Da Morte ele despertou!
Um anjo encontramos,
Que tal coisa nos fez saber.
Vejo aqui com Alegria
Que o sudário jaz desfeito.
7. Ária
7
Sanfte soll mein Todeskummer,
Nur ein Schlummer,
Jesu, durch dein Schweißtuch sein.
Ja, das wird mich dort erfrischen
Und die Zähren meiner Pein
Von den Wangen tröstlich wischen.
7
Suave seja a tristeza da Morte,
Apenas um sono,
Jesus, por causa de teu Sudário.
Sim, ele há de ser o meu refrigério
E das Lágrimas de meu Penar,
A minha face, consolador, há de limpar.
8. Recitativo
Entretanto, nós suspiramos
Com ardente Desejo:
Ah, pudesse ser isto logo consumado,
Ao Salvador ele mesmo contemplar!
9. Ária
Saget, saget mir geschwinde,
Saget, wo ich Jesum finde,
Welchen meine Seele liebt!
Komm doch, komm, umfasse mich;
Denn mein Herz ist ohne dich
Ganz verwaiset und betrübt.
Dizei-me, dizei-me logo,
Dizei-me onde encontro Jesus,
Aquele amado por minha Alma!
Vem, pois, vem e abraça-me;
Pois meu Coração está sem Ti
Desvalido, todo sofrendo.
10. Recitativo
Nós somos alegres,
Pois nosso Jesus vive outra vez,
E nosso Coração
Antes suspenso e desfeito em Tristeza
Esquece a Dor
E pensa em Cânticos de Alegria;
Pois nosso Salvador vive de novo.
11. Coro
Preis und Dank
Bleibe, Herr, dein Lobgesang.
Höll und Teufel sind bezwungen,
Ihre Pforten sind zerstört.
Jauchzet, ihr erlösten Zungen,
Dass man es im Himmel hört.
Eröffnet, ihr Himmel, die prächtigen Bogen,
Der Löwe von Juda kommt siegend gezogen!
Adoração e Graças
Permaneçam, Senhor, em teu canto de Louvor.
O Inferno e o Diabo submetidos estão.
Seus Portões são destruídos.
Alegrai-vos, ó Línguas desatadas,
Pois ouvidas sois no Céu.
Abri, vós Céus, os esplêndidos Arcos,
O Leão de Judá chega em triunfo!
A Paixão Segundo São João (BWV 245) estreou na Sexta-feira Santa de 1724, na Igreja de São Nicolau, em Leipzig, onde Bach era kantor havia aproximadamente 1 ano.
As paixões compostas por Bach podem ser consideradas paixão oratório. A paixão é um estilo musical existente desde a Idade Média e que ganhou força principalmente com o luteranismo. No trecho abaixo, Claude Palisca explica o desenvolvimento da paixão:
Já na alta Idade Média existiam composições de cantochão sobre os relatos dos Evangelhos acerca da paixão e morte de Cristo. A partir do século xii, aproximadamente, tornou-se hábito recitar a história em forma semidramática, com um sacerdote a cantar as partes narrativas, outro as palavras de Cristo e um terceiro as palavras da multidão (turba), tudo isto com contrastes apropriados de âmbito vocal e pulsação. Desde finais do século xv, os compositores começaram a escrever versões polifónicas dos trechos da turba em estilo de motete, contrastando com os trechos a solo, em cantochão; este tipo de composição ficou conhecido como paixão dramática ou cênica. Johann Walter adaptou a paixão dramática ao uso luterano com texto alemão na sua Paixão segundo S. Mateus, de 1550, e o seu exemplo foi seguido por muitos compositores luteranos posteriores, incluindo Heinrich Sch_tz. No entanto, sucedia também muitas vezes ser o texto integralmente musicado como uma série de motetes polifónicos -- a paixão motete. Vários foram os compositores católicos que, a partir de meados do século xv, escreveram paixões de motetes (...).
O nascimento do estilo concertato deu origem, no século xvii, a um novo tipo de paixão, próxima da forma do oratório, a que, por isso, se dá o nome de paixão oratório, incluindo este tipo de composição recitativos, árias, conjuntos, coros e peças instrumentais, prestando-se todos eles a uma apresentação dramática, como na ópera. (...)
Na segunda metade do século xvii o texto foi acrescido, em primeiro lugar, de meditações poéticas sobre os acontecimentos narrados, inseridos nos locais apropriados e, geralmente, musicados como árias solísticas, por vezes antecedidas de recitativo, e, em segundo lugar, de corais tradicionalmente associados à história da Paixão, que eram geralmente cantados pelo coro ou pela congregação.
(...)
Nos primeiros anos do século xviii, sob a influÊncia do pietismo, surgiu um novo tipo de texto da Paixão com Jesus ensanguentado e moribundo, de Hunold-Menantes (1704), onde a narrativa bíblica era parafraseada com pormenores cruamente realistas e interpretações simbólicas tortuosas, bem ao gosto da época. De clima semelhante é o popular texto da Paixão de B. H. Brockes (1712), que foi trabalhado por Keiser, Haendel, Mattheson e cerca de quinze outros compositores do século xviii. Até J. S. Bach recorreu a ela para os textos de algumas árias da sua Paixão segundo S. João.
(Claude V. Palisca. História de Música Ocidental.)
Os elementos da paixão oratório -- e que estão presente nesta Paixão -- são o recitativo, a ária e o coral. Nos recitativos estão os textos extraídos do Evangelho, sendo que o evangelista é geralmente um tenor, Jesus e demais personagens, baixos. As árias são textos poéticos, não evangélicos, comentando a parte do texto que se está tratando. É interessante observar, na Paixão segundo São João, a presença da primeira pessoa do singular nas árias, coisa que, até então, não era muito comum. Não era comum aparecer a individualidade, mas apenas a coletividade. Acredita-se que essa mudança possa ter sido uma influência do pietismo, que propunha uma religião mais introspectiva, preocupando-se também com o indivíduo. Conforme exposto no texto acima, o coro, que tantas vezes surge durante os textos evangélicos, representa a coletividade, a turba. Já as partes corais são, como as árias, comentários poéticos.
Como era comum nas paixões oratório, a presente possui duas partes. Entre uma e outra, era feito um sermão.
De forte carga dramática, a Paixão Segundo São João, em nosso meio, é ofuscada pela Paixão Segundo São Mateus, considerada uma das obras-primas de Bach. Ao contrário da Paixão Segundo Mateus, a Segundo João não tem o texto integralmente composto por um libretista -- pelo menos o nome de tal poeta não é conhecido. Acredita-se que os textos das árias e corais tenham cada um uma origem diferente.
Os vídeos abaixo têm um dos melhores regentes da música de Bach: John Eliot Gardiner. No palco, temos a equipe especializada em música barroca, com instrumentos de época, que sempre o acompanha: English Baroque Solists e Monteverdi Choir. Os instrumentos barrocos podem ser observados no vídeo, principalmente os de sopro. São usadas, por exemplo, flautas de madeira -- o que nos faz lembrar por que elas são integrantes do naipe das madeiras.
Podem ser vistos, ainda, o órgão, com suas chaves para mudança de registro, e o cravo, que fazem, juntamente com outros instrumentos, o continuo.
Na presente montagem, um contratenor substitui a contralto.
Quanto à tradução para o português, está sujeita a imperfeições, uma vez que não foi feita diretamente do alemão, mas a partir de traduções para o inglês, francês e espanhol. Além disso, nos trechos em que o evangelho é transcrito, foi utilizada a tradução da CNBB da Bíblia para o português.
Paixão Segundo São João (BWV 245)
Johann Sebastian Bach
John Eliot Gardiner
English Baroque Solists
Monteverdi Choir.
Mark
Padmore: (tenor - Evangelista)
Peter Harvey (barítono - Cristo)
Katharine Fuge (soprano)
Robin Blaze (contratenor)
Nicholas Mulroy (tenor)
Jeremy Budd
(tenor)
Matthew Brook (baixo)
Primeira Parte
1. Coro
Destacamos, em primeiro lugar, o coro inicial, já ele dramático, que
introduz a peça. Ele nos convida a ver que até na humilhação, no
sofrimento, o Filho de Deus é glorificado. Sua Paixão, antes de
dolorosa, trágica, triste, é sagrada, gloriosa.
Herr, unser Herrscher, dessen Ruhm
In allen Landen herrlich ist!
Zeig uns durch deine Passion,
Daß du, der wahre Gottessohn,
Zu aller Zeit,
Auch in der größten Niedrigkeit,
Verherrlicht worden bist!
Senhor, Senhor!
Tua glória reina em todos os povos!
Mostra-nos,
por tua Paixão,
que Tu, Filho do Deus verdadeiro,
Até nas maiores humilhações
Foi glorificado
Jo 18, 1-11
Logo no início, já chama a atenção a forma como Bach lida com os recitativos, tornando-os dramáticos, melodiosos, e intercalando-os com frases bastante vibrantes, embora breves, do coro. Nessas intervenções pode-se observar um contraste típico do barroco.
No coral número 7, observamos a exaltação do Amor, porém o autor, em
vez de, justamente pensando nesse Amor, reconhecer que Jesus sofreu no
nosso lugar, canta um pesado sentimento de culpa por viver os prazeres,
as alegrias da vida, pensamento característico da mentalidade religiosa
de seu tempo. Essa mentalidade, porém, será gradativamente superada ao longo da obra.
No coral seguinte, uma doce prece.
2.Rezitativ
EVANGELIST
Jesus ging mit seinen Jüngern über den Bach Kidron,
da war ein Garten, darein ging Jesus und seine Jünger.
Judas aber, der ihn verriet, wußte den Ort auch, denn
Jesus versammlete sich oft daselbst mit seinen Jüngern.
Da nun Judas zu sich hatte genommen die Schar und
der Hohenpriester und Pharisäer Diener, kommt er
dahin mit Fackeln, Lampen und mit Waffen. Als nun
Jesus wußte alles, was ihm begegnen sollte, ging er
hinaus und sprach zu ihnen:
JESUS
Wen suchet ihr?
EVANGELIST
Sie antworteten ihm:
3. CHOR
Jesum von Nazareth!
4. Rezitativ
EVANGELIST
Jesus spricht zu ihnen:
JESUS
Ich bin's.
EVANGELIST
Judas aber, der ihn verriet, stund auch bei ihnen.
Als nun Jesus zu ihnen sprach: Ich bin's! wichen sie
zurücke und fielen zu Boden. Da fragete er sie abermal:
JESUS
Wen suchet ihr?
EVANGELIST
Sie aber sprachen:
5. CHOR
Jesum von Nazareth!
6. Rezitativ
EVANGELIST
Jesus antwortete:
JESUS
Ich hab's euch gesagt, daß ich's sei; suchet ihr denn
mich, so lasset diese gehen!
7. CHORAL
O große Lieb', o Lieb' ohn alle Maße,
Die dich gebracht auf diese Marterstraße!
Ich lebte mit der Welt in Lust und Freuden,
Und du mußt leiden!
8. Rezitativ
EVANGELIST Auf daß das Wort erfüllet würde, welches er sagte: Ich habe der keine verloren, die du mir gegeben hast. Da hatte Simon Petrus ein Schwert und zog es aus und schlug nach des Hohenpriesters Knecht und hieb ihm sein recht' Ohr ab; und der Knecht hieß Malchus. Da sprach Jesus zu Petro:
JESUS Stecke dein Schwert in die Scheide! Soll ich den Kelch nicht trinken, den mir mein Vater gegeben hat?
9. CHORAL Dein Will' gescheh, Herr Gott, zugleich Auf Erden wie im Himmelreich. Gib uns Geduld in Leidenszeit, Gehorsam sein in Lieb' und Leid; Wehr' und steu'r allem Fleisch und Blut, Das wider deinen Willen tut!
2. Recitativo
EVANGELISTA
Jesus saiu com seus discípulos para o outro lado da torrente do Cedron.
Lá havia um jardim, no qual ele entrou com os seus discípulos. Também Judas, o traidor, conhecia o lugar, porque Jesus muitas vezes ali se reunia com seus discípulos.
Judas, pois, levou o batalhão romano e os guardas dos sumos
sacerdotes e dos fariseus, com lanternas, tochas e armas, e chegou ali. Jesus, então, sabendo tudo o que ia acontecer com ele, saiu e disse:
JESUS
A quem procurais?
EVANGELISTA
Responderam-lhe:
3. CORO
A Jesus de Nazaré!
4. Recitativo
EVANGELISTA
Jesus lhes disse:
JESUS
Sou eu.
EVANGELISTA
Judas, o traidor, estava com eles. Quando Jesus disse “Sou eu”, eles recuaram e caíram por terra.
De novo perguntou-lhes:
JESUS
A quem buscais?
EVANGELISTA
Eles disseram:
5. CORO
A Jesus de Nazaré.
6. Recitativo
EVANGELISTA
Respondeu Jesus:
JESUS
Já vos disse que sou eu.
Se é a mim que procurais, deixai que estes aqui se retirem
7. CORAL
Ó grande Amor! Ó Amor sem medida,
que te levou a este caminho de martírio!
Eu tenho vivido em um mundo de alegria e prazeres, e Tu deves sofrer!.
8. Recitativo
EVANGELISTA
Assim se cumpria a palavra que ele tinha dito: “Não perdi nenhum daqueles que me deste”. Simão Pedro, que tinha uma espada, puxou-a e feriu o servo do sumo
sacerdote, cortando-lhe a ponta da orelha direita. O nome do servo era
Malco.
Jesus disse a Pedro:
JESUS
Guarda a tua espada na bainha.
Será que não vou beber o cálice que o Pai me deu?
9. CORAL
Faça-se a tua vontade, meu Deus,
assim na Terra como no Céu.
Dá-nos paciência no sofrimento,
obediência na alegria e na dor,
e afasta-nos de toda a carne e todo o sangue que se oponha à tua vontade.
Jo 18, 12-14
Neste terceiro vídeo, após o recitativo, temos, na voz do contra-tenor, a bela ária normalmente cantada por contralto. No trecho anterior, observamos o sentimento de culpa por viver uma vida feliz em vista do sofrimento do Salvador. Aqui, nesta ária, o compositor já começa a abandonar esse sentimento ao reconhecer que foi para nos libertar que Cristo foi preso.
10. Rezitativ
EVANGELIST
Die Schar aber und der Oberhauptmann und die
Diener der Jüden nahmen Jesum und bunden ihn
und führeten ihn aufs erste zu Hannas, der war Kaiphas'
Schwäher, welcher des Jahres Hoherpriester war.
Es
war aber Kaiphas, der den Jüden riet, es wäre gut, daß
ein Mensch würde umbracht für das Volk.
11. Arie (Alt)
Von den Stricken meiner Sünden
Mich zu entbinden,
Wird mein Heil gebunden.
Mich von allen Lasterbeulen
Völlig zu heilen,
Läßt er sich verwunden.
10. Recitativo
EVANGELISTA
O batalhão, o comandante e os guardas dos judeus prenderam Jesus e o amarraram.
Primeiro, conduziram-no a Anás, sogro de Caifás, o sumo sacerdote daquele ano.
Caifás é quem tinha aconselhado aos judeus: “É conveniente que um só homem morra pelo povo”.
11. Aria (contratenor)
Para me libertar das amarras do meu pecado, Meu Salvador foi preso.
Para curar a infecção da minha iniquidade,
Jo 18, 15 Seguindo o caminho da 'descoberta' da Paixão de Cristo, a ária de soprano representa a total substituição do sentimento de culpa pelo desejo de seguir Jesus. O tom de lamento é substituído por uma alegre melodia. Merece ser observada a participação das flautas, dividindo a cena com a soprano. A flauta, no barroco, está, de modo geral, ligada ao sentimento de Amor.
12. Rezitativ
EVANGELIST
Simon Petrus aber folgete Jesu nach und ein ander
Jünger.
13. Arie (Sopran)
Ich folge dir gleichfalls mit freudigen Schritten
Und lasse dich nicht,
Mein Leben, mein Licht.
Beförd're den Lauf
Und höre nicht auf,
Selbst an mir zu ziehen, zu schieben, zu bitten.
12. Recitativo
EVANGELISTA
Simão Pedro e um outro discípulo seguiam Jesus.
13. Aria (soprano)
Eu também te seguirei com alegres passos,
E não te deixarei,
Minha Vida, minha Luz.
Nunca deixes de me mostrar o caminho
Guia-me, encoraja-me a segui-lo.
Jo 18,15-23
No coral final deste trecho pode-se encontrar um repúdio à violência.
14. Rezitativ
EVANGELIST
Derselbige Jünger war dem Hohenpriester bekannt und
ging mit Jesus hinein in des Hohenpriesters Palast.
Petrus aber stund draußen vor der Tür. Da ging der
andere Jünger, der dem Hohenpriester bekannt war,
hinaus und redete mit der Türhüterin und führete
Petrum hinein. Da sprach die Magd, die Türhüterin, zu
Petro:
ANCILLA (Magd)
Bist du nicht dieses Menschen Jünger einer?
EVANGELIST
Er sprach:
PETRUS
Ich bin's nicht!
EVANGELIST
Es stunden aber die Knechte und Diener und hatten ein
Kohlfeu'r gemacht (denn es war kalt) und wärmeten
sich. Petrus aber stund bei ihnen und wärmete sich.
Aber der Hohepriester fragte Jesum um seine Jünger
und um seine Lehre. Jesus antwortete ihm:
JESUS
Ich habe frei, öffentlich geredet vor der Welt. Ich habe
allezeit gelehret in der Schule und in dem Tempel, da
alle Jüden zusammenkommen, und habe nichts im
Verborgnen geredt. Was fragest du mich darum? Frage
die darum, die gehöret haben, was ich zu ihnen geredet
habe! Siehe, dieselbigen wissen, was ich gesaget habe!
EVANGELIST
Als er aber solches redete, gab der Diener einer,
die dabei stunden, Jesu einen Backenstreich und
sprach:
SERVUS (Diener)
Solltest du dem Hohenpriester also antworten?
EVANGELIST
Jesus aber antwortete:
JESUS
Hab ich übel geredt, so beweise es, daß es böse sei,
hab ich aber recht geredt, was schlägest du mich?
15. CHORAL
Wer hat dich so geschlagen,
Mein Heil, und dich mit Plagen
So übel zugericht'?
Du bist ja nicht ein Sünder
Wie wir und unsre Kinder,
Von Missetaten weißt du nicht.
Ich, ich und meine Sünden,
Die sich wie Körnlein finden
Des Sandes an dem Meer,
Die haben dir erreget
Das Elend, das dich schläget,
Und das betrübte Marterheer.
14. Recitativo
EVANGELISTA
Este discípulo era conhecido do sumo sacerdote.
Ele entrou com Jesus no pátio do sumo sacerdote.
Pedro ficou do lado de fora, perto da porta.
O outro discípulo, que era conhecido do sumo sacerdote, saiu, conversou com a empregada da porta e levou Pedro para dentro.
A criada da porta disse a Pedro:
CRIADA
Não pertences tu também aos discípulos desse homem?
EVANGELISTA
Ele respondeu:
PEDRO
Não sou.
EVANGELISTA
Os servos e os guardas tinham feito um fogo, porque fazia frio; estavam se aquecendo, e Pedro estava com eles para se aquecer.
O sumo sacerdote interrogou Jesus a respeito dos seus discípulos e do seu ensinamento.
Jesus respondeu:
JESUS
Eu falei abertamente ao mundo. Eu sempre ensinei nas sinagogas e no templo, onde os judeus se reúnem. Nada falei às escondidas.
Por que me interrogas? Pergunta aos que ouviram o que eu falei; eles sabem o que eu disse.
EVANGELISTA
Quando assim falou, um dos guardas que ali estavam deu uma bofetada em Jesus, dizendo:
GUARDA:
É assim que respondes ao sumo sacerdote?
EVANGELISTA
Jesus replicou-lhe:
JESUS
Se falei mal, mostra em que falei mal; e se falei certo, por que me bates?
15. Coral
Quem te golpeou assim, meu Deus,
E te colocou em tão triste estado?
Tu não és pecador como nós e nossos filhos;
não conheces o mal.
Sou eu quem,
com meus pecados,
numerosos como os grãos da areia,
fui a causa de tuas aflições e teus tormentos.
Jo 18, 24-27
Encerrando a primeira parte da Paixão estão as duas últimas negações de Pedro, a ária de Pedro e um coral. É interessante notar, no recitativo do Evangelista, após o cantar do galo (que pode ser ouvido!), a dramaticidade com que é narrado que Pedro chorou amargamente. Vale observar que no Evangelho de João só é dito que o galo cantou.
Na ária de Pedro -- dramática, agitada, com os violinos tocando freneticamente -- volta a culpa, mas bem diferente da que apareceu no início da peça. Aqui ela tem sabor de arrependimento, algo bem humano de alguém que ama, erra, se arrepende e chora. O doce coral que segue a ária (e faz contraste a ela) explica que Pedro agiu sem pensar e que soube se arrepender de ser erro. Por isso, é um exemplo para nós.
16. Rezitativ
EVANGELIST Und Hannas sandte ihn gebunden zu dem Hohenpriester Kaiphas. Simon Petrus stund und wärmete sich; da sprachen sie zu ihm:
17. CHOR Bist du nicht seiner Jünger einer?
18. Rezitativ
EVANGELIST Er leugnete aber und sprach:
PETRUS Ich bin's nicht!
EVANGELIST Spricht des Hohenpriesters Knecht' einer, ein Gefreundter des, dem Petrus das Ohr abgehauen hatte:
SERVUS (Diener) Sahe ich dich nicht im Garten bei ihm?
EVANGELIST Da verleugnete Petrus abermal, und alsobald krähete der Hahn. Da gedachte Petrus an die Worte Jesu und ging hinaus und weinete bitterlich. 19. Arie (tenor) Ach, mein Sinn,
Wo willt du endlich hin,
Wo soll ich mich erquicken?
Bleib ich hier,
Oder wünsch ich mir
Berg und Hügel auf den Rücken?
Bei der Welt ist gar kein Rat,
Und im Herzen
Stehn die Schmerzen
Meiner Missetat,
Weil der Knecht den Herrn verleugnet hat.
20. CHORAL Petrus, der nicht denkt zurück, Seinen Gott verneinet, Der doch auf ein' ernsten Blick Bitterlichen weinet. Jesu, blicke mich auch an, Wenn ich nicht will büßen; Wenn ich Böses hab getan, Rühre mein Gewissen!
16. Recitativo
EVANGELISTA
Anás, então, mandou-o, amarrado, a Caifás.
Simão Pedro continuava lá, aquecendo-se. Disseram-lhe:
17. CORO
Não és tu, também, um dos discípulos dele?
18. Recitativo
EVANGELISTA
Pedro negou:
PEDRO
Não.
EVANGELISTA
Então um dos servos do sumo sacerdote, parente daquele a quem Pedro tinha cortado a orelha, disse:
SERVO
Será que não te vi no jardim com ele?
EVANGELISTA
Pedro negou de novo, e na mesma hora o galo cantou.
Pedro se lembrou das palavras de Jesus, foi para fora e chorou amargamente.
19. Ária (tenor)
Ó, alma minha,
Para onde irás,
Onde acharás refúgio?
Ficar aqui,
Ou esconder-me atrás dos montes e colinas?
No mundo não há consolo,
E a dor invade meu peito,
Por causa de meu pecado:
o servo renegou seu Senhor.
20. Coral
Pedro, sem pensar, negou seu Deus,
mas sob o peso de um olhar de reprovação chora amargamente.
Olha-me, Jesus, quando eu não quiser me arrepender; e quando houver pecado, comova minha consciência!
Sinfonia Fantástica em Cinco Atos.
(Symphoniefantastiqueencinqparties), Op. 14a, foi composta por Hector
Berlioz (1803-1869), integrante do romantismo francês, em 1830. Embora
tenha estreado no Conservatório de Paris em dezembro
do mesmo ano, só foi publicada 15 anos mais tarde, após várias revisões
e modificações. A Sinfonia Fantástica
em conjunto com Lélio ou O Retorno à
Vida formam o conjunto que recebeu o nome de Episódios da Vida de um Artista (Op.
14), que foi apresentado em São Paulo, em abril de 2009, pela
Orchestre des Champs-Elysées.
É interessante a história dessa composição. Ao assistir, em 1827, no Théâtre
de l'Odéon, à
peça Hamlet de Shakespeare, Berlioz se apaixonou pela atriz
irlandesa HarrietSmithson,
considerada uma atriz de segunda linha.
Rejeitado pela inacessível atriz, Berlioz se convenceu de que
era uma cortesã, indigna de seu amor. Nessa linha, e sob a
influência de Weber, Gothe e Beethoven, começou a compor
a Sinfonia Fantástica: a história de uma paixão seguida por uma
desilusão. Para expor a degradação do ídolo, porém, Berlioz não poderia
se valer do modelo tradicional da sinfonia. Construiu um drama em cinco
partes (expostas abaixo), que evolui dos sentimentos mais puros e
apaixonados aos delírios e sarcasmo. Durante toda a obra está presente a
amada, ou objeto
da obsessão, representada por uma melodia, uma ideia fixa.
A sinfonia é, na verdade, uma colcha de retalhos onde melodias
previamente compostas por Berlioz são alinhavada pela ideia fixa. Isso
não diminui o valor da obra. Ao contrário, dá maior legitimidade ao
subtítulo e à intenção do compositor: episódios
da vida de um artista. Faz uma revisão de sua obra, de
seus fracassos -- de suas peças não executadas, de suas duas eliminações
do concurso de composição de Roma -- e também de seus sucessos -- dos prêmios
de Segundo e Primeiro lugar no concurso de Roma e da aceitação como
compositor. Ao lado de tudo isso, está sempre presente a paixão pela atriz
inglesa, que o perseguia havia quatro anos. HarrietSmithson
não foi à estreia
da obra em 1930. Porém, dois anos mais tarde, em novembro
de 1932, ela compareceu à execução, em Paris, quando a Sinfonia foi
seguida pelo monodrama
lírico Lelio
ou o retorno à vida -- formando a obra op 14, Episódios da Vida de Um Artista. Após
esse acontecimento, Berlioz teve uma recaída e declarou-se à atriz,
dessa vez com sucesso. Casaram-se no ano seguinte, mas ficaram poucos
anos juntos.
Hector Berlioz
A Sinfonia, primeiro exemplo de música programática instrumental, é
acompanhada por um roteiro, escrito pelo próprio compositor, publicado
no LeFigaro dez dias antes da estreia,
que, segundo Berlioz, deve ser distribuído à plateia antes da execução
da obra. O roteiro também sofreu modificações. Segundo a versão de 1932. O compositor teve o objetivo
de desenvolver (...) diferentes situações da vida de um artista. (...) O
programa a seguir deve ser considerado como o texto falado de uma ópera
(...).
Primeira
Parte: Devaneios, Paixões.
O autor supõe que um jovem músico, afetado por essa doença moral que
um escritor célebre chamou de “onda de paixões” (vague despassions),
vê pela primeira vez uma mulher que reúne todos os charmes do ser ideal
com o qual sua imaginação sonha, e se apaixona perdidamente por ela.
Por uma singular bizarrice, a imagem queria não se apresenta ao espírito
do artista sem estar associada a um pensamento musical, onde ele acha
um certo caráter
passional, mas nobre e tímido como o objeto de seu amor.
Esse reflexo melódico e seu modelo o perseguem sem cessar, como um dupla
idéia
fixa. Essa é a razão da aparição constante, em todos os movimentos da
sinfonia, da melodia com que começa o primeiro allegro.
A passagem desse estado de devaneio melancólico, interrompido por
alguns acessos de alegria sem causa, para o de uma paixão delirante, com
seus movimentos de furor de ciúmes, seus retornos à ternura, suas
lágrimas, etc, tudo isso é o tema do primeiro movimento.
[O primeiro movimento começa com uma introdução lenta – a melodia que
representa a idéia
fixa – seguida por um allegro, onde estão presentes a
alegria sem causa, os acessos de ciúmes, etc]
Segunda Parte: Um Baile.
O artista é colocado nas mais diversas circunstâncias da vida, no meio
do tumulto de uma festa, na tranqüila contemplação das belezas
da natureza; mas por toda parte, na vila, no campo, a imagem querida vem
se apresentar a ele e lançar perturbação a sua alma.
[Logo no início do segundo movimento, após bela participação da harpa,
ouve-se a valsa do baile. E eis que surge a idéia
fixa dá sinais de vida. Na versão de 1955, só é feita referência à cena
do baile, sem se falar em contemplação das belezas da natureza, etc. De
fato, no segundo movimento o baile está presente o tempo todo, o que nos
leva a crer que as modificações no roteiro reflitam
modificações na versão final da música.]
Terceira Parte: Cena no Campo.
Encontrando-se uma tarde no campo, ele escuta ao longe dois pastores que
dialogam um ranz
de vaches
[canção]; esse duo pastoral, o lugar da cena, o leve barulho das árvores
docemente agitadas pelo vento, alguns motivos de esperança que ele
passou a conceber, tudo colabora para devolver ao seu coração uma calma
não usual e a dar a suas idéias uma cor mais radiante. Ele reflete
sobre seu isolamento; ele espera em breve não ser mais tão só... Mas se
ela o enganar... Essa mistura de esperança e de temor, essas idéias
de felicidade perturbadas por maus pressentimentos, formam o tema do
adagio. Ao fim, um dos pastores retoma a ranz de
vaches;
o outro não responde mais... Barulho longo de trovão... Solidão...
Silêncio...
Quarta Parte: Marcha do Suplício.
Tendo alcançado a certeza de que aquela que adora não só não responde ao
seu amor, mas também é incapaz de compreendê-lo, e que, além disso, ela
é indigna dele, o artista se envenena com ópio. A dose do narcótico,
fraca demais para levá-lo à morte, o mergulha em um sono acompanhado das
mais terríveis visões. Ele sonha que matou aquela que amava, que é
condenado, conduzido ao suplício, e que assiste à sua própria execução. O
cortejo avança ao som de uma marcha ora sombria e violenta, ora
brilhante e solene, na qual um barulho surdo de passos graves sucede sem
transição aos mais barulhentos estrondos. Ao fim da marcha, os
quatro primeiros compassos da idéia fixa reaparecem como um
último pensamento de amor interrompido pelo golpe fatal.
Quinta Parte: Sonhos de uma Noite de Sabbat.
Ele se vê no sabbat,
no meio de um grupo horrível de sombras, de feiticeiras, de monstros de
todas as espécies, reunidos para seu funeral. Barulhos estranos,
gemidos, gargalhadas, gritos longínquos que parecem ser respondidos por
outros. A melodia amada reaparece ainda, mas ela perdeu seu caráter
de nobreza e timidez; tem somente um ar de dança ignóbil, trivial e
grotesca: é ela que vem ao sabbat... Ruidosa de alegria à sua
chegada... Ela se mistura à orgia
diabólica... Sinos fúnebres, paródia burlesca de DiesIrae. A
dança do Sabbat
e o DiesIrae
juntos.