quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Handel: Messias - Parte I, 13-18

Esse trecho começa com uma bela e suave sinfonia pastoral que se estende por 53 segundos. Em seguida, um recitativo para soprano com o primeiro trecho exclusivamente do novo testamento, tirado do Evangelho de Lucas:
Havia naquela região pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do rebanho.
(Lucas 2,8)
O curto recitativo conduz, naturalmente, a uma pequena ária, ainda para soprano, que é a continuação do texto de Lucas:
Um anjo do Senhor lhes apareceu, e a glória do Senhor os envolveu de luz. Os pastores ficaram com muito medo.
(Lucas 2,9)
Lucas continua, e temos mais um recitativo
O anjo então lhes disse: “Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que será também a de todo o povo:
hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós o Salvador, que é o Cristo Senhor!

(Lucas 2,10-11)
 e outra ária
De repente, juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste cantando a Deus:
(Lucas 2,13)
conduz ao seguinte coro, que é um dos pontos altos do oratório (o cronômetro marca 2:33):
“Glória a Deus no mais alto dos céus, e na terra, paz aos que são do † seu agrado!”
(Lucas 2,14)
 Da sinfonia pastoral -- que introduz o clima dos pastores à noite, no campo -- até o coral Glory to God há uma evolução que conduz, gradativamente, a um climax.


Aos 4 minutos e 13 segundos da gravação uma ária de soprano, agora não mais tão reduzida quanto as anteriores, vem festejar a boa-nova. Aqui o Antigo Testamento volta com o texto de Zacarias:
“Regozija-se grandemente, filha de Sião, dá vivas, filha de Jerusalém, pois agora o teu rei está chegando, Ele é o justo Salvador;
e ele falará de paz aos pagãos.

(Zacarias 9,9-10)











É interessante notar esse diálogo entre os Antigo e Novo testamentos habilmente. É como se eles se confirmassem mutuamente: o Novo mostra que o Antigo se cumpriu enquanto o Antigo confirma que se trata, de fato, do Messias.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Handel: Messias - Parte I, 10-12


O recitativo arioso For, behold, darkness shall cover the earth, para baixo, começa escuro, falando das trevas, da escuridão, mas aí o Senhor traz a luz e termina com o brilho do alvorecer e a música sugerindo a claridade. Essa evolução de sombras para luz nos lembra a festa de Natal, cujo dia é o do solstício de inverno, no hemisfério norte, e que substituiu a festa pagã do Sol Invicto. Na noite do dia 24 de dezembro – o mais curto do ano naquele hemisfério -- para o dia 25, os pagãos celebravam a vitória do sol, uma vez que os dias passavam a ser, gradativamente, mais longos. Para nós, cristãos, a luz passou a ser Cristo e a analogia, bastante oportuna. 
O texto, mais uma vez, é tirado do Profeta Isaías:
Sim, a escuridão cobre a terra, 
as trevas cobrem os povos 
mas o Senhor se levantará sobre ti 
e sua glória aparecerá sobre ti. 
E os gentios caminharão à tua luz, 
os reis, ao brilho do teu alvorecer.
(Isaías 60,2-3)
Quando o marcador de tempo indica 1:50 tem início a ária de baixo The people that walked in darkness have seen a great light:
O povo que andava na escuridão viu uma grande luz,
para os que habitavam as sombras da morte 
uma luz resplandeceu. 
(Isaías 9,1)

Fica evidente a forma como são cantadas as palavras darkness e light: enquanto a primeira é a mais grave, mais escura do ponto de vista vocal, a outra é mais alta e mais intensa.

Aos 5 minutos e 34 segundos da gravação é celebrado o nascimento do Messias com o jubiloso coral For unto us a child is born:
Pois para nós uma criança nasceu, 
um filho nos foi dado; 
a soberania repousa sobre seus ombros, 
e ele se chama: Maravilhoso, Conselheiro, 
Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz. 
(Isaías 9,5)
Segue a gravação, continuação do post anterior, tendo como regente Chirtopher Hogwood e, solista, o baixo David Thomas.



Abaixo está um vídeo desse sedutor coral -- agora sob a regência de Sir Colin Davis --, repleto do espírito cristão que deveria dar o tom de uma autêntica celebração de Natal e das esperanças no Ano Novo.



Com esse vídeo e ao som do Messias desejamos um Feliz 2011.

Handel: Messias - Parte I, 7-9 (And He Shall Purify, Behold, a virgin shall conceive,O thou that tellest good tidings to Zion)

Retomemos o coro And He Shall Purify. Esse coro, conforme já observamos, com texto de Malquias 3,3, conclui o texto da ária de soprano. Na versão de Hogwood -- e, portanto, a de 1754 do Messias --, o coro, em fuga, é introduzido por um coral infantil.
E ele purificará os filhos de Levi
Para que eles possam oferecer ao Senhor
uma oferta de justiça.

(Malaquias 3,3)
Quando o cronômetro marca 2:50, tem início o recitativo de contralto. O texto, que é retomado em Mateus 1,23, é tirado do Profeta Isaías:


Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe porá o nome de Emanuel,
Deus conosco.

(Isaías 7,14)
Aos 3 minutos e 16 segundos tem início a ária de contralto O thou that tellest good tidings to Zion. O texto é tirado de Isaías:
Ó tu que dizes boas novas a Sião,
Sobe a uma alta montanha, 
Ó tu que dizes boas novas a Jerusalém,
levanta tua voz com força,  
Grita, não tenhas medo! 
Diz às cidades de Judá: 
“Eis o vosso Deus!” 
(Isaías 40,9)
De pé! Deixa-te iluminar! 
Chegou a tua luz! 
A glória do SENHOR está surgindo sobre ti.
(Isaísa 60,1)
Observemos que, logo na introdução, os violinos já brilham e escalam as altas montanhas. Além disso, quando a contralto (na gravação, Carolyn Watkinson) canta mountain, faz melismas que nos dão, de fato, a sensação de que ela está escalando.
Essa bela ária é arrematada pelo coro, que retoma o primeiro e os três últimos versos, embora não de forma linear.


Segue a gravação, ainda sob a direção de Chrispher Hogwood, com a contralto Carolyn Watkinson, The Choir Of Westminster Abbey e The Academy of Ancient Music.





O link abaixo leva ao vídeo sob a regência de Sir Colin Davis, com a London Symphony Orchestra e a contralto Sara Mingardo. Aqui o coro infantil não é utilizado.

http://www.youtube.com/watch?v=pb9aVihGEyE

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Handel: Messias - Parte I, 4-6 (And the Glory, Thus saith the Lord of hosts, But who may abide)

Continuemos com a primeira parte do Messias.


Abordaremos, aqui, um coro (And the Glory of the Lord), um recitativo e uma ária (But who may abide), todas baseadas em textos do Antigo Testamento. As cenas de 1 a 3, abordadas anteriormente, eram todas tiradas do profeta Isaías. Aqui apenas o coro é uma continuação dos textos de Isaías utilizados nessas cenas -- razão pela qual já o havíamos incluído no 'post' anterior. As outras duas, recitativo e ária, foram compostas a partir de textos de Malaquias e Ageu.


Retomemos o belo coro And The Glory of the Lord, já colocado no posto anterior. Como a letra original, em inglês, está no vídeo abaixo, colocaremos aqui apenas a tradução:


E a glória do Senhor será revelada
e toda carne, juntamente, o verá
pois a boca do Senhor o disse!

(Isaías 40,5)
Trata-se de um coro de grande júbilo, que celebra a glória do Senhor. É um clima de grande alegria e esperança.


Em seguida, após 2 minutos e 50 segundos de áudio, vem o recitativo para baixo:
Assim diz o Senhor dos exércitos:
Ainda um pouco mais e Eu abalarei os céus e a terra,
o mar e a terra seca, e Eu abalarei todas as nações,
e o Desejado de todas as nações virá.

(Ageu 2,6-7)
O Senhor a quem vós buscais de repente virá ao Seu templo
o próprio mensageiro da aliença, em quem vos deleitais;
eis, Ele virá, diz o Senhor dos exércitos.

(Malaquias 3,1)
Quando o cronômetro marca 4:07 tem início a belíssima ária But who may abide, baseada em texto de Malaquias:
Quem poderá agüentar o dia de sua chegada?
E quem ficará de pé quando ele aparecer?
Pois ele é igual ao fogo de uma fundição.

(Malaquias 3,2)
A ária começa doce, meditativa, e se incendeia quando a última frase é cantada: sente-se, nitidamente, o fogo chegando!
A versão de Hogwood do Messias é a apresentada por Händel em 1754 e, por isso, a ária é cantada por uma soprano -- Emma Kirkby, que o faz com bastante intensidade!


Ouçamos essas três partes com The Choir Of Westminster Abbey e The Academy of Ancient Music (que utiliza instrumentos de época) sob a regência de Cristopher Hogwood.





Vale a pena nos determos um pouco mais na ária, que nessa gravação da versão de 1754, conforme já observamos, é cantada por soprano e foi escrita, originalmente, para baixo -- razão pela qual vem em seguida do recitativo de baixo. Há, no youtube, dois vídeos interessantes do aspecto histórico, uma vez que ilustram a evolução dessa ária. Infelizmente, são vídeos caseiros, com acompanhamento de midi, só mesmo para conhecermos as versões compostas por Händel anteriormente a essa que conhecemos hoje, composta em 1750.
O vídeo abaixo traz aquela que acredita-se ter sido a executada na estréia da obra, em 1742, bastante curta e só com os dois primeiros versos da letra que hoje em dia é cantada:





No ano seguinte, após uma revisão, a ária ganhou a letra inteira exposta acima e ficou consideravelmente mais longa e elaborada:





Após tantas versões, pode surgir a pergunta: qual é a definitiva, para Händel? De fato, no barroco, não havia esse conceito de uma versão definitiva da obra. Ao contrário, ela era normalmente adaptada ao ambiente e aos intérpretes.

Para encerrar, o link abaixo lava a um vídeo em que The Choir of King's college de Cambridge e The Brandenburg consort, sob a regência de Stephen Cleobury, executam o recitativo para baixo (Alastar Miles), a ária cantada pela contralto Hillary Sumers e o coro que conclui a ária:
E ele purificará os filhos de Levi
Para que eles possam oferecer ao Senhor
uma oferta de justiça.

(Malaquias 3,3)
http://www.youtube.com/watch?v=OJsAgMhucY8



quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Händel: Messias - Parte I, 1-3: Abertura, Confort ye, Every Valley.

O Messias de Händel é, sem dúvida, um dos oratórios mais conhecidos -- se não o mais conhecido -- da nossa música ocidental. Mesmo aqueles que não têm muito contato com a nossa música clássica já ouviram o "Aleluia" de Händel.

Mercier: Retrato de Händel.

Georg Friedrich Händel, um dos mais importantes compositores do barroco, nasceu na Alemanha em 1685 -- mesmo ano em que Bach -- e aos 20 anos foi para a Itália: por três anos aprendeu e assimilou o estilo da ópera italiana. Em 1710 mudou-se para a Inglaterra, onde produziu a parte mais significativa de sua obra -- inclusive O Messias -- e virou George Frideric Handel. Lá permaneceu até sua morte em abril de 1759.

Com música de Händel e libreto de Charles Jennens, o Messias (Messiah, HWV56) foi composto no verão de 1741 e estreou no ano seguinte, em um concerto beneficente em Dublin, obtendo grande sucesso.Trata-se de um extenso oratório em três atos, que abrange toda a trajetória de Cristo. Segundo relatos, Händel teria levado apenas 24 dias para compor a peça.
As três partes (ou atos) do Messias são:
Parte I: A Anunciação
1: A profecia da Salvação
2: A profecia da vinda do Messias
3: Presságios para o mundo em geral
4: Profecia do concepção da Virgem
5: A aparição do Anjo aos Pastores
6: Milagres de Cristo
Parte II: A Paixão
1: O sacrifício, a flagelação e a agonia na cruz
2: Sua morte, Sua passagem pelos infernos, e sua ressurreição
3: Sua Ascensão
4: Deus revela a sua identidade no Céu
5: O início da evangelização
6: O mundo e seus governantes rejeitam o Evangelho
7: O triunfo de Deus
Parte III: O resultado
1: A promessa de redenção da queda de Adão
2: Dia do Julgamento
3: A vitória sobre a morte e o pecado
4: A glorificação de Cristo.

A gravação abaixo -- com o excelente tenor Paul Elliott e a Academy of Ancient Music sob a direção de Christopher Hogwood -- começa com a Sinfonia de abertura, da qual destacamos a fuga tipicamente barroca que pode ser ouvida após uma curta introdução. Aos 2 minutos e 50 segundos de gravação tem início o arioso -- algo entre recitativo e ária -- para tenor "Confort ye": um trecho do Profeta Isaías que diz
“Consolai, consolai o meu povo!”, diz o vosso Deus.
Falai ao coração de Jerusalém, anunciai-lhe: seu cativeiro terminou, sua culpa está paga, da mão do SENHOR já recebeu por suas faltas o castigo dobrado.
Grita uma voz: “No deserto abri caminho para o SENHOR! No ermo rasgai estrada para o nosso Deus!" (Is 40, 1-3)
Chama-nos a atenção, nesse clima quase solene de proclamação, a primeira frase a ser cantada, "confort ye", a forma como ela é reforçada, conforme será observado em outro vídeo adiante.
Aos 5 minutos e 45 segundos do áudio tem início a ária "Every valley shall be exalted", ainda para tenor. É a continuação do trecho de Isaías:
Todo vale seja aterrado, toda montanha, rebaixada, para ficar plano o caminho acidentado e reto, o tortuoso.(Is 40,4)
Aqui estão presentes os contrastes forte-piano típicos do barroco e os melismas, além das notas ascendentes e descendentes, que nos ajudam a visualizar os vales e montanhas do caminho que será aplainado. Quando o texto fala dos vales que serão elevados, primeiro as notas descem aos vales, depois sobem, o elevando. Já as montanhas são primeiro escaladas, depois rebaixadas. Também o acidentado e o tortuoso apresentam movimentos verticais das notas, enquanto que no plano há um longo melisma que muda de nota suavemente e com intervalos muito pequenos. Trata-se de um exemplo da aplicação da Teoria dos Afetos, bastante popular no Barroco. Os trechos da parte da voz, abaixo, ilustram de forma gráfica esses movimentos ascendentes e descendentes.  



 Vamos, agora à música!



Sobre o "Confort ye" que comentamos acima, segue o vídeo com comentário do maestro Trevos Pinnock. Um tanto lenta e quase romântica, com um tenor que está confundindo Händel com Wagner, não é, musicalmente, a nossa concepção preferida, mas vale a pena ouvir o que ele fala desse "confort ye", consolai, tão simples, três notas, e que tanto nos envolve.


No capítulo 3 do Evangelho de S. Mateus é anunciado que se cumpriu a profecia de Isaías:
"Apareceu João, o Baptista, a pregar no deserto da Judeia. Dizia: «Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu.» Foi deste que falou o profeta Isaías, quando disse: Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas."
O trecho de Orígenos, abaixo, nos lembra que a reflexão cristã na preparação do Natal não se deve resumir a rememorar um fato histórico ocorrido há mais de 2 milênios, mas, principalmente, a acolher a vinda de Cristo a cada dia em nossa vida:
"João batista dizia: «Toda a ravina será preenchida» (Lc 3,5), mas não foi ele quem preencheu todos os vales, foi o Senhor, nosso Salvador. [...] «E os caminhos tortuosos ficarão direitos». Cada um de nós era tortuoso [...] e foi a vinda de Cristo, realizada na nossa alma, que endireitou tudo o que o era."
Orígenes (c. 185-253), presbítero e teólogo


Após essas considerações, voltemos à música, agora com a versão em vídeo do áudio postado acima, porém sem a Abertura. Não escolhemos o vídeo de outra versão qualquer para postar aqui porque quanto mais ouvimos diferentes gravações do Messias mais nos convencemos da excepcional qualidade da de Hogwood.


Händel e o Profeta Isaías continuam:
A glória do SENHOR vai, então, aparecer e todos verão que foi o SENHOR quem falou!
(Isaías 40,5)


Voltaremos a esse belíssimo coral no próximo 'post', com a excelente versão de Hogwood.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Mahler: Sinfonia n. 1 em Ré Maior


Motivados pelo concerto da Osesp desta semana (22 a 24 de abril de 2010), exploremos um pouco a Sinfonia n. 1 em Ré maior de Gustav Mahler (1860-1911).

Antes de mais nada, ouçamos um delicioso lied -- ou seja, uma canção -- de Malher, que aparecerá durante praticamente todo o movimento da sinfonia. Essa canção, Ging heut morgen übers Feld, é o segundo movimento do ciclo Lieder Eines Fahrenden Gesellen (Canções de um Companheiro Viajante), de 1884, com letra e música do próprio Mahler, e que teve por motivação uma paixão não correspondida. A histórica gravação abaixo é do fantástico barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau.


Ging heut morgen übers Feld Nesta manhã eu andei através de um campo 
Ging heut morgen übers Feld,
Tau noch auf den Gräsern hing;
Sprach zu mir der lust'ge Fink:
"Ei du! Gelt? Guten Morgen! Ei gelt?
Du! Wird's nicht eine schöne Welt?
Zink! Zink! Schön und flink!
Wie mir doch die Welt gefällt!"
Esta manhã atravessei o campo,
Ainda havia orvalho na erva.
Disse-me o tentilhão:
«Olá! Como estás? Bela manhã! Não é verdade?
O mundo não está a tornar-se belo?
Chip! Chip! Belo e vivo!
Como me agrada o mundo!»
Auch die Glockenblum' am Feld
Hat mir lustig, guter Ding',
Mit den Glöckchen, klinge, kling,
Ihren Morgengruß geschellt:
"Wird's nicht eine schöne Welt?
Kling, kling! Schönes Ding!
Wie mir doch die Welt gefällt! Heia!"
Também as flores-campaínhas do campo
Estiveram a anunciar coisas alegres
com o seu pequeno sino, ding, ding.
Ao darem os bons-dias:
«O mundo não está a tornar-se belo?
Ding, ding! Coisa linda!
Como o mundo me agrada! Eia!»
Und da fing im Sonnenschein
Gleich die Welt zu funkeln an;
Alles Ton und Farbe gewann
Im Sonnenschein!
Blum' und Vogel, groß und klein!
"Guten Tag, ist's nicht eine schöne Welt?
Ei du, gelt? Schöne Welt?"
E ali, sob os raios do sol,
Começou o mundo a brilhar.
Tudo ganhou sons e cor
Sob o brilho do sol!
Flores e aves, grandes e pequenas!
«Bom-dia! O mundo não é belo?
E tu, que dizes? Não é verdade? O mundo é belo!»
Nun fängt auch mein Glück wohl an?
Nein, nein, das ich mein',
Mir nimmer blühen kann!
Agora a minha felicidade também vai começar?
Não! Não! A felicidade em que penso
Nunca poderá florescer para mim!

No terceiro movimento será citada a quarta canção do mesmo ciclo. Abaixo está a gravação com o fantástico barítono Thomaz Hampson, que tivemos o inesquecível prazer de assistir em São Paulo, sob a regência de Leonard Bernstein. Observemos que o clima da canção já é bem diferente do da anterior.


Die zwei blauen Augen von meinem Schatz Os dois olhos azuis do meu tesouro

Die zwei blauen Augen von meinem Schatz,
Die haben mich in die weite Welt geschickt.
Da mußt ich Abschied nehmen
Vom allerliebsten Platz!
O Augen blau, warum habt ihr mich angeblickt?
Nun hab' ich ewig Leid und Grämen.


Os dois olhos azuis do meu tesouro
Mandaram-me pelo mundo fora.
Tenho de me despedir
Destes lugares queridos!
Ó olhos azuis! Porque olhastes para mim?
Assim eternamente não terei senão dor e sofrimento!
Ich bin ausgegangen in stiller Nacht
Wohl über die dunkle Heide.
Hat mir niemand Ade gesagt.
Ade! Mein Gesell' war Lieb' und Leide!
Auf der Straße steht ein Lindenbaum,
Da hab' ich zum ersten Mal im Schlaf geruht!
Parti para a noite serena,
Atravessei o prado adormecido.
Ninguém me disse adeus.
Adeus! Os meus companheiros eram o amor e a dor.
À beira do caminho estava uma tília,
Debaixo dela descansei pela primeira vez, adormeci.
Unter dem Lindenbaum, der hat
Seine Blüten über mich geschneit,
Da wußt' ich nicht, wie das Leben tut,
War alles, alles wieder gut!
Alles! Alles, Lieb und Leid
Und Welt und Traum!
Debaixo da tília, que me cobriu
Com o manto dos seus botões em flor.
Ali esqueci o tormento da vida.
Tudo, tudo ficou novamente claro.
Tudo, o amor e o sofrimento,
O mundo e o sonho.


(tradução: http://www.arlindo-correia.com/100204.html)

Agora que já ouvimos e saboreamos as canções  sigamos em frente. A Sinfonia n. 1 de Mahler estreou no dia 20 de novembro de 1889, em Budapest, sob a regência do próprio compositor. Segundo nos indica o depoimento abaixo, com tradução portuguesa, a estréia da sinfonia que hoje é tão bem aceita não foi assim tão tranquila:
Os admiradores e os detractores de Mahler tiveram oportunidade de travar uma acesa batalha no último domingo, durante a estreia da sua Sinfonia Irónica (em Ré maior). Um melómano contou-me como tudo se passou. No terceiro andamento da sinfonia pode ouvir-se uma paródia de uma marcha fúnebre. Alguns entendidos deram logo conta disso e começaram a rir, facto que suscitou a ira dos admiradores de Mahler, para quem era inadmissível que alguém se risse durante uma marcha fúnebre. Tais admiradores tentaram por isso calar as gargalhadas dos ouvintes.
Os detractores de Mahler, porém, entenderam que tal intervenção era excessiva pelo que, pretendendo demonstrar que a marcha fúnebre do senhor Mahler não era música séria, começaram a rir eles próprios com todas as forças que tinham, com o intuito de ridicularizar o senhor Mahler. E assim se desencadeou um combate tumultuoso entre bem e maldizentes. E aqueles entendidos que tinham rido por primeiro não ficaram isentos de consequências pois o ruído provocado pelos demais levou a que os sons cómicos da orquestra deixassem de se ouvir.


(Karl Kraus, A Tocha, nº 59, novembro de 1900)
Na estréia a sinfonia ainda estava em sua forma original: um poema sinfônico com duas partes, sendo que a primeira se referia à recordação da juventude e a segunda, à comédia humana. Na segunda execução (1893), Mahler deu o título Titã -- devido à novela homônima do escritor alemão Johann Paul Friedrich Richter (1763-1825), conhecido como Jean Paul --,
anexou um programa detalhado e a transformou em um poema sinfônico em forma de sinfonia, com cinco movimentos, mas ainda divididos em duas partes. A partir da quarta execução (1896), Mahler excluiu qualquer programa ou título, deixando-a apenas como Sinfonia em Ré Maior, e ainda com cinco movimentos. Por ocasião da impressão, em 1899, o segundo movimento foi suprimido, por não combinar tematicamente com os outros quatro, que são unidos por um motivo de quarta descendente -- conforme ouviremos logo no início do primeiro movimento. Podemos ver, assim, que a sinfonia não nasceu da forma que a conhecemos hoje. Ao contrário, apesar de o compositor já apresentar grande maturidade musical e material inovador, demorou para se sentir seguro com sua primeira sinfonia. O rótulo 'sinfonia' traz uma responsabilidade que frequentemente inibe compositores. Para Brahms, por exemplo, o processo de compor sua primeira sinfonia também não foi nem um pouco fácil.

Primeiro Movimento





É o primeiro movimento da primeira parte da sinfonia que, segundo o  programa de 1893, descrevia as “Recordações de juventude: promessas, conquistas e espinhos”. Este movimento é a primavera sem fim.
Ele começa, como o despertar da natureza após longa hibernação, com um Lá longo nas cordas, que persiste enquanto madeiras tocam um pequeno tema de duas notas (que faz lembrar o comecinho da Nona Sinfonia de Beethoven), a primeira quarta descendente -- que, conforme observamos acima, será uma constante durante a sinfonia --, um lá-mi, que se repete mais uma vez e, na terceira, é acrescido de mais duas quartas descendentes, formando um tema de seis notas a partir da sequência: quarta descendente, segunda ascendente. Em seguida, a família das clarinetas toca uma rápida e alegre fanfarra. Retorna a sequência de seis notas, com uma sétima a finalizando, e, em seguida, a fanfarra, mas dessa vez com três trompetes que estão fora do palco, representando trompas de caça. A resposta a isso é o tema de quarta descendente de duas notas, fazendo, nitidamente, um 'cuco': um som da natureza. Aliás, essa introdução, segundo Mahler indicou na partitura, deve ser tocada como um som da natureza.
Repetem-se as quartas descendentes e eis que surge, a partir delas, o lied 'Ging heut morgen übers Feld', tema principal do primeiro movimento, que colocamos acima. Mesmo durante o lied, a quarta descendente faz 'cu-co'. Neste momento, cria-se um encantador clima pastoral e a pureza dos sons da manhã, da natureza, tomam conta da sinfonia. É como se pássaros estivessem emprestando seu canto ao lied de Mahler. Após um climax, a orquestra volta a se acalmar, persistindo apenas as quartas descendentes. A esse 'intervalo' se segue um tema bem austríaco, que nos transporta à Viena do tempo de Mahler, no qual o lied está presente.
Acreditamos que alguém que não conheça o lied usado neste movimento não tenha qualquer prejuízo na sua apreciação, uma vez que o clima transmitido por Mahler independe de qualquer conhecimento prévio.

Segundo Movimento



Ao ouvir este movimento, não se engane: não é a cena do brinde de La Traviata! Mahler era maestro, o que pode explicar a citação, mas seria um inútil exercício tentar adivinhar o que Mahler quis com isso, ou mesmo se planejou isso ou se simplesmente a música veio à sua cabeça sem pedir licença.
Uma dança com ritmo acentuado, introduzida por trompetes, que fazem quase que um anúncio imperial, toma conta de quase todo o movimento. Nesta dança, os violinos têm presença importante -- em contraste com as outras partes, dominadas pelos instrumentos de sopro. A dança é considerada o único scherzo de uma sinfonia de Mahler que não tenha um caráter de paródia ou ironia. As quartas descendentes também podem ser ouvidas.
Na metade do movimento surge o trio: uma valsa mais lenta, mais calma, sensual, onde cordas e madeiras dialogam. A dança rústica inicial é logo retomada e persiste até o fim do movimento.

Terceiro Movimento



Começa com a conhecida canção Frère Jacques, em cânone -- que, segundo Mahler, deve permanecer piano e sem crescendo --, porém em tom menor e como uma marcha fúnebre. Verdi aparece novamente, agora com o Rigoletto (Ato 1, Cena 2). Seguem-se citações de canções circenses ou de feira popular e a já mencionada quarta canção do ciclo. Após isso, retornam Frère Jacques e a marcha fúnebre que, segundo o trecho acima, causou risos nos entendidos da época, delatores de Mahler.
Porém, o que terá chocado ainda mais o
público do seu tempo, foi o programa que Mahler distribuiu e segundo o qual este andamento seria uma Marcha fúnebre “ao estilo de Callot”. A alusão a Jacques Callot (1592-1635), um estranho artista gráfico francês famoso pelo tom fantástico e grotescamente anedótico dos seus desenhos, é simultaneamente uma alusão a E.T.A. Hoffmann e às suas Fantasiestücke in Callots Manier (Peças fantásticas à maneira de Callot, 1814-15) – que tinham inspirado já Schumann para as Peças de Fantasia op.12. Esta alusão indica que não se trata aqui de luto, mas sim de uma paródia sobre o luto, na qual o elemento grotesco assume preponderância. Mais ainda: Mahler associa toda a cena a uma imagem muito conhecida dos livros infantis do espaço cultural germânico, um desenho intitulado “As cerimónias fúnebres do caçador”, no qual diversos animais da floresta acompanham o caixão do caçador morto até à sepultura: lebres empunham estandartes, enquanto à frente uma banda de música da Boémia toca, sendo acompanhada por gatos, sapos, e gralhas; veados, corças, raposas e outros animais quadrúpedes acompanham o cortejo em posturas burlescas.

(Paulo Pereira de Assis, no programa da Orquestra Nacional do Porto - 16/01/2010)

Quarto Movimento





Começa num bom estilo de filme de suspense. Sem dúvida trata-se do trecho sinfônico mais barulhento até então escrito. Devemos observar que para fazer o fortíssimo Mahler não se vale de todos os instrumentos da orquestra tocando juntos, mas sim sequencialmente. Surge uma melodia que só vai acumulando energia, tensão, passando longe de qualquer cadência ou repouso. Após um tempo, a orquestra se cala e recomeça com mais tranquilidade. Surge um segundo tema mais lírico, de grande beleza e dramaticidade, e bastante longo.
O primeiro tema retorna, sempre com violência.
Em seguida a orquestra se acalma e uma surpresa: aparecem o cuco (quarta descendente) e a melodia principal do primeiro movimento (Ging heut morgen übers Feld).
Os sons da natureza, como no primeiro movimento, persistem mesmo na coda, inclusive com a nota sustentada nas cordas.

Quanto às gravações existentes, além da de Leonard Bernstein aqui usada, recomendamos fortemente a de Bruno Walter, assistente de Mahler.
Um vídeo atual excelente é o que está no ar na Medici TV, da Orquestra de Paris sob a regência de Christoph Eschenbach:
http://www.medici.tv/bk/movie/14208/play/

domingo, 4 de abril de 2010

Bach: Oratório de Páscoa (BWV 249)

No primeiro dia da semana, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, Maria Madalena foi ao túmulo e viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo.
Ela saiu correndo e foi se encontrar com Simão Pedro e com o outro discípulo, aquele que Jesus mais amava. Disse-lhes: “Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram”.
Pedro e o outro discípulo saíram e foram ao túmulo.
Os dois corriam juntos, e o outro discípulo correu mais depressa, chegando primeiro ao túmulo.
Inclinando-se, viu as faixas de linho no chão, mas não entrou.
Simão Pedro, que vinha seguindo, chegou também e entrou no túmulo. Ele observou as faixas de linho no chão,
e o pano que tinha coberto a cabeça de Jesus: este pano não estava com as faixas, mas enrolado num lugar à parte.
O outro discípulo, que tinha chegado primeiro ao túmulo, entrou também, viu e creu.
De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos.

(Jo 20, 1-9)

O Oratório de Páscoa (Osteroratorium BWV 249) foi composto por Bach na década de 1730.

De comovente beleza, ele começa com uma vibrante Sinfonia que tem algumas frases que fazem lembrar a sinfonia de abertura do Oratório de Natal. Tal associação faz todo o sentido, inclusive por estarem ligadas as idéias de Ressurreição e nascimento. O lindo Adagio, quase uma ária para oboe d'amore, dá o clima de vazio, de silêncio, que imperava após a morte de Jesus. A vibração da sinfonia é retomada no coro inicial, que canta a corrida de Pedro e João em direção ao túmulo onde Jesus deveria estar. A atmosfera do Adagio, no entando, é retomada. Como narra o momento em que mulheres e, em seguida, os discípulos descobriram que a pedra havia sido retirada e o túmulo estava vazio, o oratório começa com a dúvida e a hesitação, ainda sob o efeito da tristeza causada pela morte de Jesus, e com uma música de grande beleza e delicadeza. Ao longo do oratório surge a agitação -- 'onde encontro Jesus?' -- e, finalmente, a alegria: 'nosso Salvador vive de novo! Alegrai-vos!'

No vídeo, o Philippe Herreweghe, um especialista no assunto que tivemos o privilégio de ver, aqui em São Paulo, em 2009. Podem ser vistos, no vídeo, instrumentos de época como o oboe d'amore, já citado, e flauta de madeira, etc.

Infelizmente, os recitativos foram suprimidos do vídeo do youtube. Colocaremos, porém, o texto aqui, para que se tenha uma visão completa da obra.

Oratório de Páscoa
BWV 249

Philippe Herreweghe
Collegium Vocale

soprano: Agnès Mellon
alto: Andreas Scholl
tenor: Mark Padmore
baixo: Peter Kooy

1. Sinfonia


2. Adagio


3. Coro

Kommet,Kommt, eilet und laufet, ihr flüchtigen Füße,
Erreichet die Höhle, die Jesum bedeckt!
Lachen und Scherzen
Begleitet die Herzen,
Denn unser Heil ist auferweckt.
Vinde, correi e com pressa, pés fugitivos,
Alcançai a gruta que cobre a Jesus!
Risos e graças
Seguem os Corações,
Pois nosso Salvador despertou.

4. Recitativo

Ó fria Mente dos Homens!
Onde foi o Amor,
Que ao Salvador deveis?

Uma fraca mulher vos envergonha!

Ah! Uma turbada Aflição,

E no Coração um doloroso penar,

Com salgadas Lágrimas
E Ânsias plenas de melancolia
Ungüento para ele hão de ser,

Que vós, assim como nós, em vão preparastes.

5. Ária

Seele, deine Spezereien
Sollen nicht mehr Myrrhen sein.
Denn allein
Mit dem Lorbeerkranze prangen,
Stillt dein ängstliches Verlangen.
Alma, teus ungüentos
Não devem ser mais de mirra.
Pois somente
O esplendor de uma coroa de louros
Há de pacificar teus ansiosos Anelos.

6. Recitativo

Eis a Gruta.

E aqui a Pedra,
Que tal a recobre.
Mas onde estará meu Salvador?

Da Morte ele despertou!
Um anjo encontramos,
Que tal coisa nos fez saber.

Vejo aqui com Alegria
Que o sudário jaz desfeito.

7. Ária

7
Sanfte soll mein Todeskummer,
Nur ein Schlummer,
Jesu, durch dein Schweißtuch sein.
Ja, das wird mich dort erfrischen
Und die Zähren meiner Pein
Von den Wangen tröstlich wischen.
7
Suave seja a tristeza da Morte,
Apenas um sono,
Jesus, por causa de teu Sudário.
Sim, ele há de ser o meu refrigério
E das Lágrimas de meu Penar,
A minha face, consolador, há de limpar.

8. Recitativo

Entretanto, nós suspiramos
Com ardente Desejo:
Ah, pudesse ser isto logo consumado,
Ao Salvador ele mesmo contemplar!

9. Ária

Saget, saget mir geschwinde, Saget, wo ich Jesum finde, Welchen meine Seele liebt! Komm doch, komm, umfasse mich; Denn mein Herz ist ohne dich Ganz verwaiset und betrübt. Dizei-me, dizei-me logo, Dizei-me onde encontro Jesus, Aquele amado por minha Alma! Vem, pois, vem e abraça-me; Pois meu Coração está sem Ti Desvalido, todo sofrendo.

10. Recitativo

Nós somos alegres,
Pois nosso Jesus vive outra vez,
E nosso Coração
Antes suspenso e desfeito em Tristeza
Esquece a Dor
E pensa em Cânticos de Alegria;
Pois nosso Salvador vive de novo. 

11. Coro


Preis und Dank Bleibe, Herr, dein Lobgesang. Höll und Teufel sind bezwungen, Ihre Pforten sind zerstört. Jauchzet, ihr erlösten Zungen, Dass man es im Himmel hört. Eröffnet, ihr Himmel, die prächtigen Bogen, Der Löwe von Juda kommt siegend gezogen! Adoração e Graças Permaneçam, Senhor, em teu canto de Louvor. O Inferno e o Diabo submetidos estão. Seus Portões são destruídos. Alegrai-vos, ó Línguas desatadas, Pois ouvidas sois no Céu. Abri, vós Céus, os esplêndidos Arcos, O Leão de Judá chega em triunfo!