terça-feira, 20 de abril de 2010

Mahler: Sinfonia n. 1 em Ré Maior


Motivados pelo concerto da Osesp desta semana (22 a 24 de abril de 2010), exploremos um pouco a Sinfonia n. 1 em Ré maior de Gustav Mahler (1860-1911).

Antes de mais nada, ouçamos um delicioso lied -- ou seja, uma canção -- de Malher, que aparecerá durante praticamente todo o movimento da sinfonia. Essa canção, Ging heut morgen übers Feld, é o segundo movimento do ciclo Lieder Eines Fahrenden Gesellen (Canções de um Companheiro Viajante), de 1884, com letra e música do próprio Mahler, e que teve por motivação uma paixão não correspondida. A histórica gravação abaixo é do fantástico barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau.


Ging heut morgen übers Feld Nesta manhã eu andei através de um campo 
Ging heut morgen übers Feld,
Tau noch auf den Gräsern hing;
Sprach zu mir der lust'ge Fink:
"Ei du! Gelt? Guten Morgen! Ei gelt?
Du! Wird's nicht eine schöne Welt?
Zink! Zink! Schön und flink!
Wie mir doch die Welt gefällt!"
Esta manhã atravessei o campo,
Ainda havia orvalho na erva.
Disse-me o tentilhão:
«Olá! Como estás? Bela manhã! Não é verdade?
O mundo não está a tornar-se belo?
Chip! Chip! Belo e vivo!
Como me agrada o mundo!»
Auch die Glockenblum' am Feld
Hat mir lustig, guter Ding',
Mit den Glöckchen, klinge, kling,
Ihren Morgengruß geschellt:
"Wird's nicht eine schöne Welt?
Kling, kling! Schönes Ding!
Wie mir doch die Welt gefällt! Heia!"
Também as flores-campaínhas do campo
Estiveram a anunciar coisas alegres
com o seu pequeno sino, ding, ding.
Ao darem os bons-dias:
«O mundo não está a tornar-se belo?
Ding, ding! Coisa linda!
Como o mundo me agrada! Eia!»
Und da fing im Sonnenschein
Gleich die Welt zu funkeln an;
Alles Ton und Farbe gewann
Im Sonnenschein!
Blum' und Vogel, groß und klein!
"Guten Tag, ist's nicht eine schöne Welt?
Ei du, gelt? Schöne Welt?"
E ali, sob os raios do sol,
Começou o mundo a brilhar.
Tudo ganhou sons e cor
Sob o brilho do sol!
Flores e aves, grandes e pequenas!
«Bom-dia! O mundo não é belo?
E tu, que dizes? Não é verdade? O mundo é belo!»
Nun fängt auch mein Glück wohl an?
Nein, nein, das ich mein',
Mir nimmer blühen kann!
Agora a minha felicidade também vai começar?
Não! Não! A felicidade em que penso
Nunca poderá florescer para mim!

No terceiro movimento será citada a quarta canção do mesmo ciclo. Abaixo está a gravação com o fantástico barítono Thomaz Hampson, que tivemos o inesquecível prazer de assistir em São Paulo, sob a regência de Leonard Bernstein. Observemos que o clima da canção já é bem diferente do da anterior.


Die zwei blauen Augen von meinem Schatz Os dois olhos azuis do meu tesouro

Die zwei blauen Augen von meinem Schatz,
Die haben mich in die weite Welt geschickt.
Da mußt ich Abschied nehmen
Vom allerliebsten Platz!
O Augen blau, warum habt ihr mich angeblickt?
Nun hab' ich ewig Leid und Grämen.


Os dois olhos azuis do meu tesouro
Mandaram-me pelo mundo fora.
Tenho de me despedir
Destes lugares queridos!
Ó olhos azuis! Porque olhastes para mim?
Assim eternamente não terei senão dor e sofrimento!
Ich bin ausgegangen in stiller Nacht
Wohl über die dunkle Heide.
Hat mir niemand Ade gesagt.
Ade! Mein Gesell' war Lieb' und Leide!
Auf der Straße steht ein Lindenbaum,
Da hab' ich zum ersten Mal im Schlaf geruht!
Parti para a noite serena,
Atravessei o prado adormecido.
Ninguém me disse adeus.
Adeus! Os meus companheiros eram o amor e a dor.
À beira do caminho estava uma tília,
Debaixo dela descansei pela primeira vez, adormeci.
Unter dem Lindenbaum, der hat
Seine Blüten über mich geschneit,
Da wußt' ich nicht, wie das Leben tut,
War alles, alles wieder gut!
Alles! Alles, Lieb und Leid
Und Welt und Traum!
Debaixo da tília, que me cobriu
Com o manto dos seus botões em flor.
Ali esqueci o tormento da vida.
Tudo, tudo ficou novamente claro.
Tudo, o amor e o sofrimento,
O mundo e o sonho.


(tradução: http://www.arlindo-correia.com/100204.html)

Agora que já ouvimos e saboreamos as canções  sigamos em frente. A Sinfonia n. 1 de Mahler estreou no dia 20 de novembro de 1889, em Budapest, sob a regência do próprio compositor. Segundo nos indica o depoimento abaixo, com tradução portuguesa, a estréia da sinfonia que hoje é tão bem aceita não foi assim tão tranquila:
Os admiradores e os detractores de Mahler tiveram oportunidade de travar uma acesa batalha no último domingo, durante a estreia da sua Sinfonia Irónica (em Ré maior). Um melómano contou-me como tudo se passou. No terceiro andamento da sinfonia pode ouvir-se uma paródia de uma marcha fúnebre. Alguns entendidos deram logo conta disso e começaram a rir, facto que suscitou a ira dos admiradores de Mahler, para quem era inadmissível que alguém se risse durante uma marcha fúnebre. Tais admiradores tentaram por isso calar as gargalhadas dos ouvintes.
Os detractores de Mahler, porém, entenderam que tal intervenção era excessiva pelo que, pretendendo demonstrar que a marcha fúnebre do senhor Mahler não era música séria, começaram a rir eles próprios com todas as forças que tinham, com o intuito de ridicularizar o senhor Mahler. E assim se desencadeou um combate tumultuoso entre bem e maldizentes. E aqueles entendidos que tinham rido por primeiro não ficaram isentos de consequências pois o ruído provocado pelos demais levou a que os sons cómicos da orquestra deixassem de se ouvir.


(Karl Kraus, A Tocha, nº 59, novembro de 1900)
Na estréia a sinfonia ainda estava em sua forma original: um poema sinfônico com duas partes, sendo que a primeira se referia à recordação da juventude e a segunda, à comédia humana. Na segunda execução (1893), Mahler deu o título Titã -- devido à novela homônima do escritor alemão Johann Paul Friedrich Richter (1763-1825), conhecido como Jean Paul --,
anexou um programa detalhado e a transformou em um poema sinfônico em forma de sinfonia, com cinco movimentos, mas ainda divididos em duas partes. A partir da quarta execução (1896), Mahler excluiu qualquer programa ou título, deixando-a apenas como Sinfonia em Ré Maior, e ainda com cinco movimentos. Por ocasião da impressão, em 1899, o segundo movimento foi suprimido, por não combinar tematicamente com os outros quatro, que são unidos por um motivo de quarta descendente -- conforme ouviremos logo no início do primeiro movimento. Podemos ver, assim, que a sinfonia não nasceu da forma que a conhecemos hoje. Ao contrário, apesar de o compositor já apresentar grande maturidade musical e material inovador, demorou para se sentir seguro com sua primeira sinfonia. O rótulo 'sinfonia' traz uma responsabilidade que frequentemente inibe compositores. Para Brahms, por exemplo, o processo de compor sua primeira sinfonia também não foi nem um pouco fácil.

Primeiro Movimento





É o primeiro movimento da primeira parte da sinfonia que, segundo o  programa de 1893, descrevia as “Recordações de juventude: promessas, conquistas e espinhos”. Este movimento é a primavera sem fim.
Ele começa, como o despertar da natureza após longa hibernação, com um Lá longo nas cordas, que persiste enquanto madeiras tocam um pequeno tema de duas notas (que faz lembrar o comecinho da Nona Sinfonia de Beethoven), a primeira quarta descendente -- que, conforme observamos acima, será uma constante durante a sinfonia --, um lá-mi, que se repete mais uma vez e, na terceira, é acrescido de mais duas quartas descendentes, formando um tema de seis notas a partir da sequência: quarta descendente, segunda ascendente. Em seguida, a família das clarinetas toca uma rápida e alegre fanfarra. Retorna a sequência de seis notas, com uma sétima a finalizando, e, em seguida, a fanfarra, mas dessa vez com três trompetes que estão fora do palco, representando trompas de caça. A resposta a isso é o tema de quarta descendente de duas notas, fazendo, nitidamente, um 'cuco': um som da natureza. Aliás, essa introdução, segundo Mahler indicou na partitura, deve ser tocada como um som da natureza.
Repetem-se as quartas descendentes e eis que surge, a partir delas, o lied 'Ging heut morgen übers Feld', tema principal do primeiro movimento, que colocamos acima. Mesmo durante o lied, a quarta descendente faz 'cu-co'. Neste momento, cria-se um encantador clima pastoral e a pureza dos sons da manhã, da natureza, tomam conta da sinfonia. É como se pássaros estivessem emprestando seu canto ao lied de Mahler. Após um climax, a orquestra volta a se acalmar, persistindo apenas as quartas descendentes. A esse 'intervalo' se segue um tema bem austríaco, que nos transporta à Viena do tempo de Mahler, no qual o lied está presente.
Acreditamos que alguém que não conheça o lied usado neste movimento não tenha qualquer prejuízo na sua apreciação, uma vez que o clima transmitido por Mahler independe de qualquer conhecimento prévio.

Segundo Movimento



Ao ouvir este movimento, não se engane: não é a cena do brinde de La Traviata! Mahler era maestro, o que pode explicar a citação, mas seria um inútil exercício tentar adivinhar o que Mahler quis com isso, ou mesmo se planejou isso ou se simplesmente a música veio à sua cabeça sem pedir licença.
Uma dança com ritmo acentuado, introduzida por trompetes, que fazem quase que um anúncio imperial, toma conta de quase todo o movimento. Nesta dança, os violinos têm presença importante -- em contraste com as outras partes, dominadas pelos instrumentos de sopro. A dança é considerada o único scherzo de uma sinfonia de Mahler que não tenha um caráter de paródia ou ironia. As quartas descendentes também podem ser ouvidas.
Na metade do movimento surge o trio: uma valsa mais lenta, mais calma, sensual, onde cordas e madeiras dialogam. A dança rústica inicial é logo retomada e persiste até o fim do movimento.

Terceiro Movimento



Começa com a conhecida canção Frère Jacques, em cânone -- que, segundo Mahler, deve permanecer piano e sem crescendo --, porém em tom menor e como uma marcha fúnebre. Verdi aparece novamente, agora com o Rigoletto (Ato 1, Cena 2). Seguem-se citações de canções circenses ou de feira popular e a já mencionada quarta canção do ciclo. Após isso, retornam Frère Jacques e a marcha fúnebre que, segundo o trecho acima, causou risos nos entendidos da época, delatores de Mahler.
Porém, o que terá chocado ainda mais o
público do seu tempo, foi o programa que Mahler distribuiu e segundo o qual este andamento seria uma Marcha fúnebre “ao estilo de Callot”. A alusão a Jacques Callot (1592-1635), um estranho artista gráfico francês famoso pelo tom fantástico e grotescamente anedótico dos seus desenhos, é simultaneamente uma alusão a E.T.A. Hoffmann e às suas Fantasiestücke in Callots Manier (Peças fantásticas à maneira de Callot, 1814-15) – que tinham inspirado já Schumann para as Peças de Fantasia op.12. Esta alusão indica que não se trata aqui de luto, mas sim de uma paródia sobre o luto, na qual o elemento grotesco assume preponderância. Mais ainda: Mahler associa toda a cena a uma imagem muito conhecida dos livros infantis do espaço cultural germânico, um desenho intitulado “As cerimónias fúnebres do caçador”, no qual diversos animais da floresta acompanham o caixão do caçador morto até à sepultura: lebres empunham estandartes, enquanto à frente uma banda de música da Boémia toca, sendo acompanhada por gatos, sapos, e gralhas; veados, corças, raposas e outros animais quadrúpedes acompanham o cortejo em posturas burlescas.

(Paulo Pereira de Assis, no programa da Orquestra Nacional do Porto - 16/01/2010)

Quarto Movimento





Começa num bom estilo de filme de suspense. Sem dúvida trata-se do trecho sinfônico mais barulhento até então escrito. Devemos observar que para fazer o fortíssimo Mahler não se vale de todos os instrumentos da orquestra tocando juntos, mas sim sequencialmente. Surge uma melodia que só vai acumulando energia, tensão, passando longe de qualquer cadência ou repouso. Após um tempo, a orquestra se cala e recomeça com mais tranquilidade. Surge um segundo tema mais lírico, de grande beleza e dramaticidade, e bastante longo.
O primeiro tema retorna, sempre com violência.
Em seguida a orquestra se acalma e uma surpresa: aparecem o cuco (quarta descendente) e a melodia principal do primeiro movimento (Ging heut morgen übers Feld).
Os sons da natureza, como no primeiro movimento, persistem mesmo na coda, inclusive com a nota sustentada nas cordas.

Quanto às gravações existentes, além da de Leonard Bernstein aqui usada, recomendamos fortemente a de Bruno Walter, assistente de Mahler.
Um vídeo atual excelente é o que está no ar na Medici TV, da Orquestra de Paris sob a regência de Christoph Eschenbach:
http://www.medici.tv/bk/movie/14208/play/

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