domingo, 29 de novembro de 2009

Bach - BWV 61 - Cantata para o Primeiro Domingo do Advento

Felizmente para nós, assim como os católicos, os luteranos também têm as quarto semanas do Advento: período de preparação para o nascimento de Cristo, que se renova a cada ano. Portanto, Bach compos cantatas para os domingos desse período e podemos nos servir delas nas nossas reflexões cristãs e, também, para nosso deleite musical.
O primeiro domingo do Advento também é, tanto para católicos como para luteranos, o primeiro domingo do ano litúrgico. Por isso não é de se estranhar que, na ária de tenor (3) tenhamos "Vem, Jesus, vem à Tua igreja E concede-nos um ano novo abençoado!" 
A Cantata Nun komm, der Heiden Heiland (Vem então, Salvador dos gentios) BWV 61 foi composta para o primeiro domingo do advento de 1714, ano em que Bach, aos 29 anos, assumiu suas funções em Weimar. O libreto foi escrito por Erdmann Neumeister, a partir das leituras do dia: Rm 13:11-14 e Mt 21:1-9. Na Epístola, Paulo diz que a Salvação está mais perto, enquanto que o Evangelho mostra a chegada de Jesus em Jerusalém:
Isso é tanto mais importante porque sabeis em que tempo vivemos. Já é hora de despertardes do sono. A salvação está mais perto do que quando abraçamos a fé.
A noite vai adiantada, e o dia vem chegando. Despojemo-nos das obras das trevas e vistamo-nos das armas da luz.
Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia: nada de orgias, nada de bebedeira; nada de desonestidades nem dissoluções; nada de contendas, nada de ciúmes.
Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da carne nem lhe satisfaçais aos apetites.

Rm 13:11-14
 e
Aproximavam-se de Jerusalém. Quando chegaram a Betfagé, perto do monte das Oliveiras, Jesus enviou dois de seus discípulos,
dizendo-lhes: Ide à aldeia que está defronte. Encontrareis logo uma jumenta amarrada e com ela seu jumentinho. Desamarrai-os e trazei-mos.

Se alguém vos disser qualquer coisa, respondei-lhe que o Senhor necessita deles e que ele sem demora os devolverá.
Assim, neste acontecimento, cumpria-se o oráculo do profeta:
Dizei à filha de Sião: Eis que teu rei vem a ti, cheio de doçura, montado numa jumenta, num jumentinho, filho da que leva o jugo (Zc 9,9).
Os discípulos foram e executaram a ordem de Jesus.
Trouxeram a jumenta e o jumentinho, cobriram-nos com seus mantos e fizeram-no montar.
Então a multidão estendia os mantos pelo caminho, cortava ramos de árvores e espalhava-os pela estrada.
E toda aquela multidão, que o precedia e que o seguia, clamava: Hosana ao filho de Davi! Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto dos céus!

Mt 21,1-9


Na liturgia católica, o Advento tem dois momentos: nos dois primeiros domingos reflete-se sobre a segunda vinda de Cristo -- sobre a esperança cristã, "erguei a cabeça" --, enquanto que nos dois últimos é focada a primeira vinda de Cristo.  
Na visão de Jan van Ruusbroec, a vinda a que nos referimos nestes domingos iniciais não seria a segunda, mas a terceira:
«Aí vem o esposo» (Mt 25, 6). Cristo, o nosso esposo, pronuncia esta palavra. Em latim, o termo «venit» contém em si dois tempos do verbo: o passado e o presente, o que não impede de visar também o futuro. É por isso que vamos considerar três vindas do nosso esposo, Jesus Cristo.

Quando da primeira vinda, Ele fez-Se homem por causa do homem, por amor. A segunda vinda tem lugar todos os dias, frequentemente e em muitas ocasiões, em todos os corações que amam, acompanhada de novas graças e de novas dádivas, consoante a capacidade de cada um. A terceira vinda é aquela que terá lugar no dia do Juízo ou na hora da morte.


Bem-aventurado Jan van Ruusbroec (1293-1381), cónego regular

Les Noces spirituelles, 1 (a partir da trad. Louf, Bellefontaine 1993, p. 39 rev.)

Seguem a letra original, a tradução para o português e os vídeos de cada parte.




1. Coro

Nun komm, der Heiden Heiland,
Der Jungfrauen Kind erkannt,
Des sich wundert alle Welt,
Gott solch Geburt ihm bestellt.
Vem então, salvador dos gentios,
Reconhecido como o filho da virgem,  
Do qual o mundo todo se admira
Pelo nascimento que Deus Lhe reservou.






2. Recitativo (tenor)

Der Heiland ist gekommen,
Hat unser armes Fleisch und Blut
An sich genommen
Und nimmet uns zu Blutsverwandten an.
O allerhöchstes Gut,
Was hast du nicht an uns getan?
Was tust du nicht
Noch täglich an den Deinen?
Du kömmst und lässt dein Licht
Mit vollem Segen scheinen.
O Salvador chegou, 
Tomou nossa pobre carne e sangue 
Sobre Si 
E nos recebe como a parentes de sangue. 
Ó excelsa bondade, 
O que não fizeste por nós? 
O que não fazes 
Diariamente pelos Teus? 
Tu vens e faz Tua luz Brilhar, repleta de bençãos, sobre nós.






3. Ária (tenor)

Komm, Jesu, komm zu deiner Kirche
Und gib ein selig neues Jahr!
Befördre deines Namens Ehre,
Erhalte die gesunde Lehre
Und segne Kanzel und Altar!
Vem, Jesus, vem à Tua igreja 
E concede-nos um ano novo abençoado! Promove a glória de Teu nome, 
Conserva os bons ensinamentos 
E abençoa púlpito e altar.




 
4. Recitativo (baixo)

Siehe, ich stehe vor der Tür und klopfe an. So jemand meine Stimme hören wird
und die Tür auftun,
zu dem werde ich eingehen
und das Abendmahl mit ihm halten und er mit mir.
Eis que estou à porta e bato; 
Se alguem ouvir a minha voz 
E abrir a porta. 
Entrarei em sua casa 
E cearei com ele, e ele comigo.





 
5. Ária (soprano)

Öffne dich, mein ganzes Herze,
Jesus kömmt und ziehet ein.
Bin ich gleich nur Staub und Erde,
Will er mich doch nicht verschmähn,
Seine Lust an mir zu sehn,
Dass ich seine Wohnung werde.
O wie selig werd ich sein!
Abre-te inteiramente, meu coração, 
Para que Jesus venha e se instale. 
Embora eu seja apenás pó e terra, 
Ele não me desdenhará 
Mas verá em mim Sua vontade, 
De que eu me torne Sua morada. 
Ah, como serei bem-aventurado!




6. Coro
Amen, amen!
Komm, du schöne Freudenkrone,
bleib nicht lange!
Deiner wart ich mit Verlangen.
Amen, Amen!
Vem, ó bela coroa de alegria,
não te demores!
Espero-te com ansiedade.




Tradução: http://www.bach-cantatas.com/Texts/BWV61-Por1.htm

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Villa-Lobos

Ao lembrar os 50 anos da morte do grande compositor brasileiro, há que se lamentar o fato de sua obra ainda ser pouco tocada e pouco conhecida no Brasil. Figura controversa, talento inegável, de obra extensa (cerca de 1200 peças), Villa reinventou a música brasileira. O assunto Villa-Lobos está longe de ser esgotado, e é isso o que vemos no excelente debate entre o Maestro John Neschling -- recentemente premiado pela importante gravação da integral dos Choros com a Osesp -- João Marcos Coelho e João Luiz Sampaio no Estadão.

Parte 1:


Parte 2:


Parte 3:


Parte 4:

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Bach: Canon Houdemann BWV 1074



Mais Bach. Dessa vez, como a partitura está escrita de forma bastante econômica, aí está ela para que os mais habilidosos possam ouvir a música acompanhando a leitura. Será necessário, contudo, o auxílio de um ou dois espelhos, uma vez que essa partitura é para ser lida não apenas da forma tradicional.
O cânone é uma prática comum do final do renascimento e do barroco. Quando pensamos em cânone, logo nos vem à mente o cânone simples (ou ronda), como Frère Jacques, onde a voz consequente imita a antecedente, com a defasagem de alguns tempos. Entretanto, existem outros tipos de cânone. No cânone por intervalo, por exemplo, a voz consequente imita a antecedente em outro tom; no invertido ou por movimento contrário, a consequente segue a antecedente fazendo o movimento inverso: onde a antecedente sobe x tons, a consequente desce -- é como se colocarmos um espelho na parte de cima da partitura --; no retrógrado, a consequente segue a antecedente de trás para a frente. Um cânone retrógrado invertido é chamado de cânone de mesa, uma vez que corresponde a virar a partitura de ponta cabeça e, portanto, dois músicos em lados opostos de uma mesa podem tocá-lo.
Uma prática comum na época era escrever o cânone em forma de charada, que geralmente pode ser resolvido de mais de uma maneira. O compositor escreve uma lei codificada -- daí o termo cânone, que vem do grego, kanon, e significa lei, regra aceita --, indicando como a voz consequente deve seguir a antecedente. É isso que temos no facsimile acima, do Cânone BWV 1074 de Bach.
A figura abaixo indica as resoluções possíveis, e estão todas no site
http://jan.ucc.nau.edu/~tas3/realhud1.html



É mais que hora de ouvir a música de Bach. Aí está uma gravação do Musica Antiqua Köln. Observe que na gravação são apresentadas duas soluções.



Para finalizar, um pouco mais sobre cânone. Em seu excelente livro de História da Música Ocidental, Palisca fala sobre o tema:
O método mais corrente de escrever cânones consistia em fazer derivar uma ou mais adicionais de uma única voz inicial. As vozes adicionais tanto podiam ser escritas pelo compositor como cantadas a partir das notas da voz inicial, modificadas de acordo com certas instruções. A regra segundo a qual se obtinham estas vozes suplementares chamava-se canone, termo que significa precisamente "regra" ou "lei". (Aquilo a que hoje damos o nome de cânone chamava-se então fuga.) Por exemplo, as indicações do compositor podiam determinar que a segunda voz começasse um certo número de tempos ou compassos depois da voz original; a segunda voz podia ser uma inversão da primeira, ou seja, mover-se sempre com os mesmos intervalos, mas na direcção oposta, ou então a voz derivada podia ser a voz original lida do fim para o princípio -- dava-se a isto o nome de cânone retrógrado ou cânone cancrizans ("caranguejo").
Uma outra possibilidade consistia em fazer evoluir as duas vozes a velocidades diferentes; os cânones deste tipo chamam-se, por vezes, cânones de mensuração, e podiam ser indicados mediante a anteposição de dois ou mais sinais mensurais a uma única melodia escrita. Num cânone de mensuração a relação entre as duas vozes podia ser de aumento simples (evoluindo a segunda voz em notas de valor duplo do das notas da primeira), diminuição simples (a segunda voz em notas de metade do valor), ou uma outra relação mais complexa. É claro que todos os processos atrás descritos podiam ser combinados entre si. Além disso, a voz derivada não tinha de estar necessariamente à mesma altura que a voz original, podendo reproduzir a melodia desta a um determinado intervalo, superior ou inferior. Uma composição podia ainda comportar um cânone duplo, ou seja, dois cânones (ou até mais) cantados ou tocados em simultâneo. Duas ou mais vozes podiam evoluir em cânone, enquanto outras vozes evoluíam em linhas independentes. Em suma, torna-se evidente que era possível um considerável grau de complexidade.
(...)


Se os compositores tinham um prazer malicioso em esconderem do ouvinte os seus artifícios, este amor da mistificação manifestava-se como uma espécie de jogo de adivinhas entre compositor e intérprete. As instruções para se fazer derivar a segunda voz da primeira (ou para se cantar a voz escrita) são, por vezes, formuladas de modo intencionalmente obscuro ou jocoso, por exemplo, Clama ne cesses ("Grita sem cessar"), ou seja, ignora as pausas, e outras mais enigmáticas. Não deixa de ser significativo, quando a música começou a ser divulgada através da imprensa, no século xvi, o facto de os impressores terem muitas vezes o cuidado de fornecerem soluções para tais enigmas.



Referências:
Cânone - Wikipedia.
How to realize Bach's Houdemann Canon.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Bach: Cantata BWV 106 Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit - Actus Tragicus

Mil anos aos teus olhos são como o dia de ontem que passou: uma vigília dentro da noite.
(Salmo 90)

Mero acaso -- causado pela leitura do excelente livro Uma Noite no Palácio da Razão, de James R. Gaines -- o fato de a Cantata fúnebre de Bach BWV 106 Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit (O tempo de Deus é o melhor de todos os tempos), conhecida como Actus Tragicus, ter chegado a mim num dia de finados.
A belíssima cantata foi escrita para um funeral privado, provavelmente de um tio materno do jovem compositor. Foi a primeira grande obra de Bach, composta quando ele tinha 22 anos. Não há nenhum manuscrito dela: a partitura que chegou até nós foi uma cópia feita após a morte de Bach.
É uma cantata sobre o tempo: o tempo da Terra -- desde a Criação até o Juízo Final --, o tempo dos homens, o tempo de Deus.

No Youtube há um excelente vídeo de Ton Koopman comentando a Cantata e falando do problema criado, para a interpretação das cantatas de Bach, pelas mudanças que o Lá experimentou: 416, 466, 440, etc.



A Cantata começa com a sonatina (1), com o tempo do homem, representado pelas batidas do coração presentes no acompanhamento da viola da gamba. A bela melodia é tocada pela flauta doce. A sonatina começa em Mi bemol maior e neste tom permanece até o movimento seguinte (2a), um coral com polifonia marcadamente renascentista, quando tem início, repentinamente, com uma modulação para Dó menor, uma descida pelas tonalidades: Nele morremos... Após a citação do Salmo 90 (2b), a descida continua, agora para Fá menor, com a fuga que faz referência ao Antigo Testamento (2d). O fundo do poço (si bemol menor) é atengido na ária da contralto com as últimas palavras de Cristo na Cruz (3a): Em tuas mãos entrego o meu espírito.
Felizmente, tem início a ascensão, o movimento para a ressureição, a salvação. No solo de baixo a tonalidade já sobe de fá menor para lá bemol maior com a promessa: Ainda hoje estarás comigo no Paraíso (3b). Ouve-se, então, a soprano cantando um cantus firmus, com notas longas, de um coral luterano: Mit Fried und Freud (Eu parto agora com paz e alegria - 3b). Seguindo a subida, este movimento termina com a tonalidade de mi bemol maior. A Cantata termina glorificando a Deus (4).

Segue a letra em alemão com a tradução em português.




1


Sonatina








Flauto I/II, Viola da gamba I/II, Continuo




2a

Coro








Flauta I/II, Viola da gamba I/II, Continuo



Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit.

In ihm leben, weben und sind wir, solange er will.

In ihm sterben wir zur rechten Zeit, wenn er will.

O tempo de Deus é o melhor de todos os tempos.

Nele, vivemos, movemo-nos e existimos enquanto Ele assim quiser.

Nele morremos no tempo certo quando Ele assim quiser.






2b


Arioso Tenor









Flauto I/II, Viola da gamba I/II, Continuo




Ach, Herr, lehre uns bedenken, daß wir sterben müssen, auf daß wir klug werden.



Ah, Senhor, ensina-nos a contar os nossos dias, para tenhamos coração sábio.






2c

Aria Baixo









Flauto I/II, Viola da gamba I/II, Continuo




Bestelle dein Haus; denn du wirst sterben und nicht lebendig bleiben.


Põe em ordem tua casa; pois morrerás e não viverás.






2d


Coro









Flauto I/II, Viola da gamba I/II, Continuo




Es ist der alte Bund: Mensch, du mußt sterben!


É a antiga Lei: Homem, tens que morrer!



Soprano:

Ja, komm, Herr Jesu, komm!





Ora, vem, Senhor Jesus, vem!






3a


Aria Alto









Viola da gamba I/II, Continuo




In deine Hände befehl ich meinen Geist; du hast mich erlöset, Herr, du getreuer Gott.


Em Tuas mãos entrego meu espírito;
Tu me redimiste, Senhor, ó Deus fiel!






3b


Arioso Baixo e Choral










Viola da gamba I/II, Continuo




Heute wirst du mit mir im Paradies sein.

Mit Fried und Freud ich fahr dahin (soprano)


In Gottes Willen,
Getrost ist mir mein Herz und Sinn,

Sanft und stille.
Wie Gott mir verheißen hat:
Der Tod ist mein Schlaf geworden.


Hoje estarás comigo no Paraíso.


Eu parto agora com paz e alegria (soprano)

Pela vontade de Deus.
Confiantes estão meu coração e minha mente,

Brandos e tranqüilos.
Como Deus me havia prometido:
A morte tornou-se meu repouso.






4


Coro









Flauto I/II, Viola da gamba I/II, Continuo




Glorie, Lob, Ehr und Herrlichkeit

Sei dir, Gott Vater und Sohn bereit,

Dem heilgen Geist mit Namen!

Die göttlich Kraft

Mach uns sieghaft

Durch Jesum Christum, Amen.



Gloria, louvor, honra e majestade

A Ti, Deus, Pai, Filho,

E ao Espírito Santo!

A força de Deus

Faz-nos vitoriosos

Por meio de Jesus Cristo, Amen.






--
Baseado nas traduções de Rodrigo Maffei Libonati (http://www.bach-cantatas.com/Texts/BWV106-Por1.htm) e Antonio Braga (Uma Noite no Palácio da Razão)







Existem duas versões da Cantata que podem ser encontradas na Internet. A excelente interpretação de John Eliot Gardiner, que pode ser baixada em http://pqpbach.opensadorselvagem.org/j-s-bach-1685-1750-cantatas-actus-tragicus-bwv-106-cantata-bwv-118b-e-ode-funebre-bwv-198/ , e os vídeos de Ton Koopman com a orquestra barroca de Amsterdam, abaixo. Os vídeos estão indicados de acordo com a numeração usada acima para a separação dos movimentos.


1-2a

2b-2d

3a-4